Após 40 anos do fim da ditadura militar no Brasil, o filme “Ainda Estou Aqui” teve grande repercussão nacional e internacional e foi capaz de trazer novos desdobramentos políticos sobre o período ao retratar o desaparecimento e morte do ex-deputado federal Rubens Paivam, pelo regime ditatorial, e os reflexos na vida de sua família. Desde o lançamento do longa, em novembro de 2024, as discussões voltaram à tona: reabertura de investigações sobre crimes da ditadura, retificação de certidões de óbito de vítimas e retorno do debate sobre a Lei da Anistia. 


Além de prêmios e de reconhecimento internacional, o longa já pode ser considerado um marco na maneira como o país lida com seu passado e, conforme apontam especialistas ouvidos por O TEMPO, como toca espectadores de qualquer lugar do mundo e de diferentes espectros políticos. O legado já é maior do que ganhar ou não o Oscar. O filme teve três indicações ao prêmio. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui” conta a trajetória da mãe do autor, Eunice Paiva, em busca de resposta sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, pai de Marcelo, na ditadura. Em janeiro de 1971, ele foi levado de casa por militares à paisana e nunca mais reapareceu. 

Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Fernando Perlatto aponta a contribuição do filme para trazer a ditadura militar de volta à pauta nacional. Para ele, o fato do longa focar, não na luta armada, mas no cotidiano de uma família branca e de classe média, amplificou seu efeito. 


“É importante que a sociedade brasileira seja sempre lembrada que nós tivemos um regime repressivo, uma ditadura que violou direitos humanos, com censura e repressão, e é importante sempre falarmos sobre isso para que nunca mais ocorra”, avalia. 


Questão universal 


O escritor e crítico de cinema Pablo Villaça reforça a visão de que o filme altera o imaginário de que uma ditadura atua somente sobre pessoas ideologicamente opostas ao regime. “É o único período da história do Brasil em que a PM é agressiva com jovens brancos de classe média, e isso torna o filme mais universal para um público que normalmente não se projetaria na tela”, considera. Para a professora e pesquisadora de cinema Tatiana Carvalho Costa, o filme traz um equilíbrio entre a narrativa artística e um aspecto sombrio da história do Brasil, abrindo espaço para a existência de outras obras que abordem as demais nuances do período ditatorial. “Essa ideia de família, tão em voga, inclusive quando se defende intervenção militar pela pátria e família, é um contraponto muito incrível que o filme faz”, diz. “Quando se pensa em uma narrativa difundida e em um senso comum sobre ditadura militar, é a ideia de um inimigo interno, comunista, terrível. Não vemos isso no filme. De maneira sagaz, o filme desconstrói o estereótipo sobre pessoas que foram vítimas da ditadura”.


Quem foi Rubens Paiva?

Nascido em Santos em 1929, Rubens Beyrodt Paiva foi engenheiro civil e político. Em 1962, foi eleito deputado federal, mas teve o mandato cassado pelo regime militar, instaurado em 1964. Ele se exilou na Europa, mas voltou poucos meses depois para morar no Rio de Janeiro com a família. Em 1971, foi preso e morto pelos militares. O motivo da perseguição seriam cartas de exilados políticos endereçadas a ele. Os agentes suspeitaram que ele teria envolvimento com o guerrilheiro Carlos Lamarca, um dos homens mais procurados pelo regime militar. Durante anos, a esposa de Rubens, Eunice Paiva, lutou pela responsabilização do Estado pela morte dele. A história foi contada no livro “Ainda Estou Aqui”, de Marcelo Rubens Paiva (um dos cinco filhos do casal), que deu origem ao filme.

Vida da família Paiva   

1971: Rubens Paiva é sequestrado pelo Estado brasileiro e assassinado em algum momento entre os dias 20 e 22 de janeiro

1971: Eunice Paiva e Eliana Paiva, então com 15 anos, são levadas para o DOI-Codi; Eliana fica presa por 24 horas e Eunice por 12 dias 

1972: Eunice Paiva se muda para São Paulo e passa em primeiro lugar no curso de Direito na Universidade Mackenzie 

1985: Uma professora testemunha dizendo que viu Rubens Paiva ser espancado no DOI-Codi

1986: Ex-militar Amílcar Lobo conta à revista Veja que Rubens Paiva foi morto pelo Exército

1996: Estado emite a Certidão de óbito do Rubens Paiva

2004: Diagnóstico do Alzheimer de Eunice Paiva

2015: Lançamento do livro “Ainda Estou Aqui” por Marcelo Rubens Paiva

2018: Eunice Paiva falece em São Paulo, aos 83 anos

2024: Lançamento do filme “Ainda Estou Aqui”


Política Brasileira

1971: Governo Médici; Dois anos do AI-5, que retirou direitos constitucionais do cidadão brasileiro e durou até 1979 

1985: Morte do presidente eleito Tancredo Neves

1986: Então procurador-geral da Justiça Militar, Francisco Leite Chaves, determinou a reabertura do caso Rubens Paiva

1996: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), criada no ano anterior, viabilizou a emissão das primeiras certidões de óbito de mortos e desaparecidos pela Ditadura

2004: Metade do primeiro mandato de Lula como presidente do Brasil

2014: MPF denuncia 5 militares reformados

2015: Abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff

2018: Eleição de Jair Bolsonaro

2024: Investigações revelam tentativa de golpe de Estado para impedir a posse do presidente Lula, eleito em 2022 para seu 3º mandato