BEATRIZ CERQUEIRA

Um decreto na contramão dos problemas brasileiros

Não deveríamos estar discutindo como criar mais empregos?


Publicado em 22 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
 
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“Marci tinha 21 anos quando atirou em si mesmo na sala de casa. Tinha em casa várias armas de fogo”.

“A mãe contou que fazia cinco anos que seu filho tinha atirado em si mesmo, um mês depois de completar 40 anos”.

“Dez meses depois da morte da minha mãe, meu pai atirou em si mesmo no quarto da casa dele”, contou a filha.

“Billy atirou em si mesmo no porão de casa. Tinha 14 anos”.
Estes são alguns dos relatos presentes no trabalho excepcional da escritora, Carla Fine, publicado no Brasil, em 2018, com o título “Sem Tempo de Dizer Adeus - Como Sobreviver Ao Suicídio de Uma Pessoa Querida”. A partir da sua própria experiência, o suicídio do marido, ela percorre todos os caminhos relacionados ao assunto, que é um grande tabu na sociedade norte-americana, como também é no Brasil.

Carregamos em nossa sociedade a falsa ideia de que não falar sobre o assunto é a melhor forma de lidar com ele. Não falar só fortalece os muros que cada um vai criando de dor, culpa e outros problemas que os sobreviventes enfrentam.

Entre tantos relatos de sobreviventes, o que chamou mais minha atenção foi a constante presença de armas de fogo. O uso de armas foi responsável por 65% do total de suicídios de pessoas de até 25 anos. Entre pessoas com 15 e 19 anos, o aumento foi de mais de 80%. São dados de uma sociedade que optou pelo armamento, como agora o presidente do Brasil está optando. As casas que possuíam armas que foram utilizadas para o suicídio preenchiam os requisitos legais.

No mesmo país que merece tanta referência do atual presidente brasileiro, a ponto de ele prestar continência à sua bandeira e ao assessor de Donald Trump, armas de fogo causaram 15% das mortes de crianças e adolescentes, sendo a segunda causa de morte de crianças nos Estados Unidos.

Vamos falar de Brasil. Homicídios de crianças e adolescentes por armas de fogo aumentaram 113,7% em 20 anos. Será o decreto assinado possibilitando quatro armas por adulto, com aumento do tempo da licença de cinco para dez anos, que ajudará a modificar essa realidade? Foram mais de 10 mil crianças mortas por arma de fogo por ano no nosso país.

No Brasil, menores de 19 anos representam, em média, 20,7% do total de vítimas de armas de fogo. Estamos experimentando uma política do armamento que não resolveu os problemas de violência em lugar nenhum do mundo. Quantos “cidadãos de bem” que agridem mulheres, agora, estão encorajados a terem suas armas? Alguém tem dúvida de que as armas passarão a fazer parte das relações de violência que muitos homens já praticam cotidianamente contra mulheres?

Os números falam de uma realidade que deveria ser debatida antes de qualquer medida sobre armas no Brasil. São crianças e adolescentes que estarão mais vulneráveis à violência. São mulheres já expostas à violência que correm mais riscos de vida. O decreto é pedagógico ao legitimar a violência como forma de reação; é um recado para todos. Cada um com sua arma.

Devemos proteger nossos jovens, dificultar o acesso a armas, não incentivá-lo. Não deveríamos estar discutindo como ampliar o direito do jovem de acesso e permanência na universidade pública? Como criar mais empregos num país que tem quase 28 milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas? Como melhorar a educação pública e valorizar nossos professores? Como retirar 52 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza? Esses são alguns dos reais problemas que afetam concretamente a vida das pessoas. Os decretos presidenciais deveriam tratar disso.

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