Dívida histórica

Comissão aprova pensão para filho de pessoa com hanseníase confinada pelo Estado

A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou projeto que concede pensão vitalícia aos filhos de pessoas com hanseníase internadas compulsoriamente

Por Renato Alves
Publicado em 24 de outubro de 2023 | 14:40
 
 
 
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A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovou, nesta terça-feira (24), o projeto de lei que concede pensão vitalícia aos filhos de pessoas com hanseníase colocadas em isolamento domiciliar ou internadas em hospitais-colônia compulsoriamente até 1986. 

O Projeto de Lei número 3.023, de 2022, altera a Lei 11.520, de 2007, que concedeu pensão vitalícia de R$ 750 às pessoas com hanseníase isoladas ou internadas compulsoriamente até 31 de dezembro de 1986. 

A lei em vigor estabelece que essa pensão não pode ser transferida aos filhos após a morte. Já o novo texto aprovado concede pensão aos filhos dessas pessoas em valor não inferior a um salário mínimo, sem efeito retroativo. Também altera para esse mesmo valor a pensão das pessoas que foram internadas.

Outra alteração proposta é a menção explícita às pessoas internadas compulsoriamente em seringais, e seus filhos, que também passarão a ter o mesmo direito, caso o projeto venha a ser transformado em lei.

O projeto da Câmara dos Deputados recebeu voto favorável do relator, senador Omar Aziz (PSD-AM) e agora segue para exame do Plenário do Senado. No seu voto, Aziz argumentou que a proposta corrige um “erro histórico” ao citar a política higienista, à época, como discriminatória. 

“Trata-se, portanto, de uma medida na linha da justiça de transição e reparatória, que visa promover cidadania, dignidade e respeito à memória sensível das pessoas atingidas pela hanseníase e aos seus filhos, os quais sofreram graves danos advindos da supressão do convívio social e familiar por conta da política higienista empregada pelo Estado brasileiro no enfrentamento da doença”, ressaltou.

Diretor nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas por Hanseníase (Morhan) e filho de um casal de hansenianos que foi internado de forma compulsória na Colônia Santa Isabel, em Betim (MG), o advogado Thiago Flores se disse otimista com a aprovação do projeto nesta terça, uma etapa que, segundo ele, era considerada uma das mais difíceis nesse processo. 

"Esse PL começou a tramitar na Câmara de Deputados em 2011 e percorreu um longo caminho até chegar ao Senado. A Comissão de Assuntos Econômicos, que trata sobre os impactos financeiros que os projetos de lei podem gerar ao governo federal, era a que mais temíamos reprovar o PL no Senado. Agora, passada essa etapa, estamos otimistas pela aprovação da lei, que pode ocorrer entre esta terça e quinta (26)", ponderou Flores.

Isolamento compulsório de pacientes virou lei no Brasil na década de 1920

Durante boa parte do século 20, houve uma política de segregação chancelada pelo Estado. Antes da descoberta do tratamento para a hanseníase, o controle da doença conhecida como "lepra" era feito por meio do isolamento compulsório das pessoas.

Os doentes eram enviados para asilos e sanatórios, os leprosários. Crianças, jovens ou adultos eram separados de suas famílias e forçados ao isolamento. Às vezes, as pessoas nem eram diagnosticadas, só tinham sinais da possível doença.

O primeiro leprosário brasileiro foi aberto em 1714, no Recife (PE). Mas o isolamento compulsório dos pacientes com hanseníase foi instituído bem mais tarde, por meio de decreto em 1923. A prática virou lei federal em 1949. Treze anos depois, o governo federal editou um decreto que a aboliu, mas a prática vigorou até 1986. 

Os “leprosários” foram organizados como uma cidade, com escolas, praças, dormitórios, refeitórios e até delegacias, prisões e cemitérios. Chegaram a existir 40 “leprosários” no Brasil – 80% nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945). 

Bebês eram enviados em cestos para orfanatos, mesmo tendo pais vivos

Crianças, inclusive bebês, foram separadas dos pais, que, em muitos casos, nunca mais viram. Ainda bebês, filhos de pessoas diagnosticadas com hanseníase eram enviados em cestos a educandários e preventórios, semelhantes a creches e voltados para órfãs, mesmo tendo pais vivos.

Esses meninos e meninas eram muitas vezes colocados para adoção, ainda que se admitisse que a medida pudesse provocar danos psicológicos e sociais irreversíveis, uma grave violação aos direitos humanos que, em tese, não prescreve. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República estima que 40 mil bebês foram separados de pacientes nesta política.

Minas Gerais foi pioneira em reparação

Em 2007, o Brasil se tornou o segundo país a indenizar pessoas isoladas compulsoriamente por causa da hanseníase – o primeiro foi o Japão, que teve 17 colônias em funcionamento até os anos 1990.

Entre os estados brasileiros, Minas Gerais foi o primeiro a garantir reparação aos filhos e filhas que foram privados do convívio com seus familiares. 

Um projeto de lei do deputado Antônio Jorge (Cidadania), determina pagamento de indenização aos filhos de ex-internos de colônias do estado, e foi aprovado e sancionado pelo então governador, Fernando Pimentel (PT), no fim de 2018, mas demorou até sair do papel. 

Apenas no início de dezembro de 2019 a comissão que avalia os pedidos começou a receber as solicitações. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde mineira, os primeiros pagamentos aconteceram em março de 2021. 

Betim (MG) teve a maior colônia do país

Primeira colônia construída em Minas Gerais destinada a abrigar pessoas com hanseníase, a Santa Isabel, em Betim, chegou a abrigar quase 4.000 pacientes, que foram obrigados a viver por décadas em confinamento. 

O complexo, que começou a ser erguido há 101 anos e recebeu os primeiros pacientes há 90, foi construído numa região longe de Belo Horizonte e de qualquer centro urbano para dificultar fugas. Cercada por correntes e vigiada por guardas, a registrou muitos casos de internos que se mataram nas águas do rio Paraopeba. 

Também houve muitos relatos de maus-tratos de funcionários, de crianças agredidas no preventório – pavilhão para abrigá-las e mantê-las separadas dos pais – e até crises por falta de alimentos, registradas entre os anos de 1960 e 1970.

Todos os anos, 30 mil novos casos de hanseníase são diagnosticados no Brasil, que é o segundo país no mundo com maior incidência da doença – são 16 para cada grupo de 100 mil habitantes, sendo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca como meta dez casos por grupo de 100 mil moradores para que a enfermidade esteja sendo erradicada.

 

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