Doorgal Andrada

Fake news em uma perspectiva evolucionista

Sistemas de crenças, confiança e manipulação


Publicado em 23 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Por milhares de anos, nossa espécie foi preparada para viver uma vida bem diversa da que vivemos, uma vez que, desde o princípio, nós fomos moldados para uma vida nômade, de caça e coleta. A formação de grandes comunidades se deu há pouco mais de 7.000 anos, juntamente com a agricultura e pela necessidade de abrigo e segurança.

A despeito de milênios de evolução, aí computadas a seleção natural proposta por Darwin e a força das mutações e recombinações genéticas identificada pelo neodarwinismo, pode-se dizer que nosso corpo e mente não estão preparados para a vida em grandes sociedades (aglomerações) urbanas e muito menos com tamanho dinamismo.

A citada seleção natural – indivíduos mais adaptados a determinada condição ambiental têm mais probabilidades de sobreviver e gerar descendentes – modelou nossa espécie para que pudéssemos, com maestria, sobreviver à imersão na natureza selvagem, não para vivermos em alguns metros quadrados, muitas vezes dividindo o mesmo espaço geográfico e vertical com 20, 30 ou centenas de pessoas.

Nosso raciocínio não foi modelado para a instantaneidade e nem para retornos imediatos. Até mesmo nos últimos 5.000 a 7.000 anos em que foram concretizadas as comunidades em torno da agricultura, apesar de se instalarem a ansiedade e a preocupação com pragas, fenômenos naturais e colheitas, as pessoas ainda tinham lapsos temporais para reflexão, raciocínio, tomada de decisão, para a família e até mesmo para falar do passado e transmitir conhecimento e cultura.

Em sua obra “Sapiens”, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari propõe hipóteses muito instigantes sobre o caminho trilhado pelo Homo sapiens para se tornar a espécie dominante sobre todas as outras. Em uma abordagem que une disciplinas diversas como história, biologia e economia, ele tenta explicar como chegamos até aqui e expor os conflitos entre nossas características originais e o modo de vida atual.

Muitas das ideias de Harari são contestadas pela academia por questões de método científico – ou da falta dele –, mas não deixa de ser uma hipótese fascinante dizer que o Homo sapiens domina o mundo por ser o único animal que pode acreditar em abstrações como deuses, política ou dinheiro, bem como por ser o único capaz de cooperar para objetivos diversos e envolvendo muitos indivíduos. Igualmente interessante é a demonstração de que, apesar de toda a tecnologia, todo o conforto, seríamos menos felizes hoje do que já fomos.

E o que as fake news tem a ver com tudo isso?

Ao longo do tempo, desenvolvemos um sistema de crenças, de relações baseadas na confiança e fundadas em microagrupamentos (a família, amigos, vizinhos, uma rua, um bairro) dentro das mega-aldeias que nos abrigam hoje. Com toda a evolução, ainda precisamos da visão e da validação do grupo para determinar aquilo em que acreditamos. E, lembrando, não somos tão equipados como imaginamos para receber, processar e responder imediatamente toda informação recebemos.

As fake news estariam fundadas na confiança nas pessoas e ideias que conhecemos e respeitamos, como era na tradição oral dos primeiros assentamentos. E estariam embasadas também na nossa capacidade de acreditar em coisas abstratas, o que, convenhamos, abre amplo espaço para a manipulação. As fake news são a fofoca moderna, com uma capacidade ampliada de danos.

Seja essa hipótese válida ou não, fica uma dica aos menos atentos: da próxima vez que se deparar com alguma informação duvidosa, volte à nossa origem caçadora-coletora e vá “caçar um rumo” ou “catar um coquinho” para poder pensar e processar antes de tomar como verdade e passar adiante.

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