Gabriel Azevedo

Os velhos importam

Discriminação e esquecimento na sociedade brasileira


Publicado em 08 de maio de 2020 | 03:00
 
 
 
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No quarto ao lado do meu, está meu pai, que tem 79 anos, não foi contaminado pelo novo coronavírus, mas, neste momento, necessita de cuidados médicos por lesões no pulmão, fruto também de uma pneumonia muito grave. Aproveito para reforçar aos fumantes para não insistirem nessa tolice, como ele fez por toda a vida. Ele veio para meu apartamento se isolar comigo no dia 12 de março, saiu daqui no dia 17 de março, quando recebi o teste da Covid-19 e fiquei apreensivo com a hipótese de tê-lo contaminado. Ainda bem que havia me testado por precaução. Poderia ter sido fatal. Dias depois, veio a sua doença para piorar este momento. Ele ficou 26 dias no hospital até retornar ao meu apartamento e continuar se tratando.

Tento, mas não consigo imaginar como é viver 79 anos, passar por tantas transformações econômicas, sociais e tecnológicas ao longo da vida, adquirir um conhecimento único e poder contribuir com essa experiência justamente em uma situação de extrema gravidade para a humanidade. E, como meu pai, há milhões de brasileiros com idade superior a 60 anos e que compoem o principal grupo de risco da Covid-19.

Preservar essas vidas é fundamental para a reconstrução do Brasil pós-pandemia. Em uma sociedade com níveis razoáveis de civilidade, homens e mulheres acima de 60 anos são valorizados e respeitados, têm direito a expressar sua opinião, e ela é levada em conta e é vista como importante. É muito triste ver que no Brasil os velhos são discriminados e esquecidos, vistos com preconceito por muitos.

Por óbvio, essa situação não vem de agora. Entretanto, a dimensão da pandemia escancarou todos os aspectos da discriminação contra os idosos. E, no meu entendimento, a maior crueldade que se pratica contra a parcela mais velha da população brasileira é o esquecimento.

Nas últimas semanas, o Brasil perdeu o compositor Moraes Moreira aos 72 anos, o escritor Rubem Fonseca aos 94 anos, o escritor e poeta Aldir Blanc aos 73 anos, o ator Flávio Migliaccio aos 85 anos e, ontem, a atriz Daisy Lúcidi aos 90 anos. Todos consagrados em suas respectivas áreas de atuação, admirados em vida e pouco lembrados após a morte.

É um silêncio desrespeitoso, que contribui para a desconstrução da memória cultural e social do Brasil. Senão, como justificar a ausência de pronunciamentos oficiais e dignos da secretária de Cultura, Regina Duarte, incapaz de lamentar perdas tão relevantes publicamente?

E se a omissão diante dessas mortes é patente, olhemos para os milhares de idosos que perderam a vida em razão da pandemia do novo coronavírus. Pessoas acima de 60 anos representam 85% dos óbitos por Covid-19. Até ontem, tínhamos mais de 8.500 mortos no Brasil. E com as estimativas que falam em mais de 100 mil vidas perdidas até a pandemia perder força, a conta é assustadora: mais de 85 mil idosos morrerão.

A emoção de William Bonner na quarta-feira, na abertura do “Jornal Nacional”, ao falar justamente do significado dessas perdas para parentes, amigos e conhecidos, sintetizou à perfeição o sentimento de indignação. Toda vida importa. E muito.

E, para concluir, mais uma citação: a da comovente despedida do ator Lima Duarte, 90, ao amigo Flávio Migliaccio, que se matou. Além de denunciar a “devastação dos velhos”, Lima Duarte usou a frase de uma peça de Bertold Brecht para se posicionar diante do descaso com os velhos no Brasil: “os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”. E o fazem mesmo.

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