O governo Bolsonaro está atuando para invalidar uma votação que aprovou um documento essencial para que R$ 724 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual fossem liberados como incentivo direto ao setor.
Se tivesse sido colocado em prática, o Plano, já votado, inviabilizaria a implementação de um filtro de conteúdos em editais de incentivo da Ancine, algo que Bolsonaro defende desde o início do ano.
O chamado Plano Anual de Investimentos (PAI), com as diretrizes para o destino dos R$ 724 milhões, chegou a ser aprovado no início de novembro pelo Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual, poucas horas após a Secretaria Especial da Cultura ser transferida do Ministério da Cidadania para o do Turismo e Roberto Alvim ter sido alçado ao comando da subpasta.
A votação, porém, foi questionada no Conselho Superior de Cinema, porque os membros do Comitê haviam acordado, em uma reunião no dia 6 de novembro, fazer um novo encontro para aprovação do plano no dia 25 de novembro. O que houve, porém, é que os integrantes do comitê consideraram urgente adiantar o processo quando foi noticiada a transferência da Secretaria da Cultura para a pasta do Turismo.
Por ter sido feito eletronicamente e às pressas, a votação, última instância na aprovação do PAI, foi considerada irregular e não teve efeito. A Secretaria Especial da Cultura disse que não vai comentar sobre a votação do plano.
Desde que o Fundo Setorial do Audiovisual foi criado, em 2006, é comum que os seus recursos sejam liberados no máximo até maio. Foi o que ocorreu, por exemplo, no ano passado, na gestão Temer. Neste ano, os recursos permanecem paralisados.
O resultado da paralisação é um impacto significativo na produção cinematográfica brasileira, que enfrentou outros problemas políticos e jurídicos neste ano.
Em abril, a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, teve suas atividades paralisadas após o Tribunal de Contas da União identificar problemas nas análises de prestação de contas de projetos incentivados.
Produtores ouvidos pela reportagem dizem que os impasses na pasta da Cultura frearam a produção audiovisual do país. Uma das principais causas seria a retenção dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, que é especialmente importante para a estímulo de produções independentes.
O PAI havia sido proposto por Ricardo Rihan, que era secretário do audiovisual até o fim de novembro e foi exonerado para dar lugar primeiramente a Katiane Gouvêa, cuja nomeação foi suspensa em pouco tempo. No lugar dela, foi anunciado o nome de André Sturm, que é ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo e que terá como uma das prioridades deste fim de ano aprovar o PAI.
A votação de novembro foi submetida pelo Ministro da Cidadania, Osmar Terra, e aconteceu poucos dias após o governo nomear, para a gestão do Fundo Setorial, o pastor e colunista social Edilásio Barra, também conhecido como Tutuca.
Segundo publicação da revista Veja, partiu de Tutuca a iniciativa de recolher os cartazes de filmes nacionais dos corredores da Ancine, ação que foi criticada por cineastas e artistas. Tutuca disse à reportagem da Veja que o governo vai "decidir o que filmar no Brasil".
A proposta do PAI que foi cancelada colidia com o posicionamento de Tutuca e também com a já alegada vontade de Bolsonaro de implementar um filtro na Ancine.
Há uma nova proposta de plano anual redigida pela direção da Ancine. Os dois planos, o de Rihan e o da Ancine, poderão ser apresentados em uma nova votação do Comitê marcada para esta terça (17).
O documento já votado determinava que 80% dos recursos do Fundo Setorial deveriam ser destinados a seleções com características que impediam ingerência do governo sobre conteúdos.
Nos 80%, havia a parte de 30% a ser liberada por suporte automático - que considera a performance artística e comercial das obras, mas não os temas - e 50% via processos seletivos determinados por exibidores, distribuidores e programadores. Era um projeto que colocava o mercado como pivô das escolhas e reduzia o poder de interferência do governo em proposições temáticas.
Nos corredores da pasta da Cultura, é dito que a votação foi contestada na Casa Civil por um assessor do ministro Onyx Lorenzoni, principalmente porque foi feita eletronicamente. Existe, no governo, a interpretação de que o regulamento exige que esse processo deva ser feito presencialmente.
O regulamento do Comitê Gestor do Fundo Setorial admite leituras: ele diz apenas que as matérias de baixa complexidade e/ou elevada urgência poderão ser objeto de pauta eletrônica. Em 2009, por exemplo, o Plano Anual de Investimentos foi aprovado por votação eletrônica.