Neiva Chaves Zelaya, que viria a fundar a primeira manifestação religiosa nascida em Brasília, nunca havia demonstrado qualquer tendência mediúnica ou de liderança religiosa até 1958, quando tinha 33 anos. Ela se distinguia das demais mulheres da época pelo fato de ter se tornado motorista de caminhão após ficar viúva, 11 anos antes, com quatro filhos para criar. De lá para cá, virou uma espécie de santa para quase 1 milhão de seguidores.
A doutrina criada por Neiva hoje tem cerca de 800 mil adeptos iniciados (chamados de médiuns), atuantes em mais de 1.000 templos no Brasil e em outros sete países, que acreditam no poder de cura difundido pela criadora. O Vale do Amanhecer, como foi batizado o sistema de origem brasiliense, tem complicada estrutura hierárquica, baseada em referências cristãs, espíritas, maias e até orientais, mas não é considerada religião pelos adeptos.
Com arquitetura que mistura vários estilos em espaços abertos e fechados, lagos, cascatas, cores fortes, imagens de animais e formas geométricas, seus templos são usados para rituais e atendimentos espirituais diários aos seguidores da doutrina. Pessoas que buscam curas espirituais para problemas físicos, passes ou conselhos. Os médiuns usam vestimentas coloridas, brilhantes, capas enormes e carregam lanças.
A primeira caminhoneira profissional do Brasil
Nascida em 30 de outubro de 1925, em Propiá, Sergipe, Neiva cresceu com os três irmãos no interior de Goiás, para onde os pais se mudaram. Casou-se, aos 18 anos, com Raul Zelaya Alonso, então secretário do engenheiro Bernardo Sayão, o homem que viria a ser apontado como um dos grandes responsáveis pela construção de Brasília. Com Raul, Neiva teve quatro filhos: Gilberto, Carmem Lúcia, Vera Lúcia e Raul.
Viúva aos 22 anos e com quatro crianças, primeiro ela abriu uma loja de revelação de filmes fotográficos. Não deu certo. Trabalhou como costureira, agricultora e, por fim, aprendeu a dirigir ônibus e caminhão, tornando-se a primeira mulher a obter a carteira de motorista de veículos pesados no Brasil. Com os filhos, percorreu diversos Estados, até fixar-se em Goiânia e receber o convite de Bernardo Sayão para trabalhar na construção de Brasília.
Neiva mudou-se para a Cidade Livre (atual Núcleo Bandeirante), um setor fora do Plano Piloto, com ruas de terra e pequenos imóveis de madeira, criado para abrigar o comércio que atenderia os homens e as mulheres envolvidos na construção da nova capital. Seria provisório, mas acabou virando uma região administrativa, como as outras 32 que ocupam o quadrilátero do Distrito Federal.
Durante os dois primeiros anos da construção de Brasília (que seria inaugurada em 21 de abril de 1960), Neiva dirigiu diferentes caminhões, transportando materiais de construção e mantimentos para ajudar o fluxo de insumos e gêneros de necessidade que o grandioso projeto precisava. Trabalhava de 12 a 14 horas por dia. Era a única mulher entre todos os motoristas envolvidos na faraônica obra tocada na administração de Juscelino Kubitschek.
Neiva abandonou canteiro de obras para dedicar-se à criação de sua doutrina
Segundo testemunhos dela, Neiva começou a ter fortes manifestações mediúnicas no fim de 1958. E aquilo a perturbava bastante, pois era católica. O aumento dos fenômenos de clarividência fez com que ela buscasse explicações no espiritismo. Neiva deixou a Cidade Livre com seus filhos e cinco famílias espiritualistas, abandonou parcialmente sua vida profissional e dedicou-se à criação de sua doutrina.
O grupo fundou, em 8 de novembro de 1959, a União Espiritualista Seta Branca (UESB), na Serra do Ouro, próximo a Alexânia (GO), a pouco mais de 80 quilômetros de Brasília. No templo, “pacientes” eram atendidos pelos médiuns que ali residiam, em construções de madeira e palha. Neiva mantinha ali, também, um “hospital” e um orfanato com cerca de 80 crianças. Plantavam, faziam farinha e tábuas para vender, e pegavam fretes.
Já conhecida como Tia Neiva, a líder espiritual ingressou, em 9 de novembro de 1959, na Alta Magia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em 1964 mudou-se para Taguatinga (hoje a segunda mais populosa região administrativa do DF), onde manteve a Ordem Espiritualista Cristã. Neste mesmo ano, Tia Neiva foi internada por causa de uma tuberculose, que não a impediu de continuar o projeto de ampliar sua doutrina.
Após longa busca, Tia Neiva e seu grupo chegaram a Planaltina, em 9 de novembro de 1969, onde fundou o atual Vale do Amanhecer. A 50km do Plano Piloto, Planaltina é uma das regiões administrativas do Distrito Federal. Seu núcleo populacional existia muito antes da construção de Brasília. Por isso tem um centro histórico, com casario em estilo colonial, dos tempos em que pertencia ao Estado de Goiás e era ponto de passagem de tropeiros.
Seguidores de Tia Neiva se vêem com integrantes de tribo liderada por reencarnação de Francisco de Assis
Neiva decidiu se estabelecer fora da área urbana, sob o Morro da Capelinha, que viria a ser cenário da maior encenação da via-sacra do DF, manifestação católica. Lá fica o templo-mãe do Vale do Amanhecer. Ocupando 10 mil m², tem como destaques a estátua do Pai Seta Branca (indígena tupinambá que em vida passada teria sido São Francisco de Assis), uma pirâmide e uma estrela construída em um lago imenso, no ponto chamado Estrela Candente.
“Nós, adeptos do Vale do Amanhecer, acreditamos que fomos reencarnados várias vezes, juntos, em várias civilizações, em povos guerreiros, que destruíram muito, mataram, contraíram uma enorme dívida com a humanidade. Nos identificamos como uma tribo, que tem uma missão coletiva e, liderada pelo espírito de Francisco de Assis, trabalha em favor da humanidade”, explica o advogado Jayro Zelaya, 47 anos, neto de Tia Neiva.
Ele diz que o trabalho dos médiuns do Vale do Amanhecer é voltado principalmente às pessoas mortas. “Nem todo mundo que morre cumpriu sua missão na Terra, conquistou seu direito a um lugar de paz, como uma colônia. Muitas ficam na escuridão, vagando pela Terra, até mesmo em mundos sombrios. A missão de Francisco de Assis é justamente ajudar essas pessoas, promover o resgate em massa desses espíritos que chamamos de sofredores”, ressalta.
E foi Tia Neiva, segundo Jayro Zelaya, quem veio à Terra com a missão de unir essa “tribo” com missão de ajudar os “espíritos sofredores”. “Ela não tinha conhecimento acadêmico, instrução. Ela teve que se sacrificar muito por essa missão. Ela simplesmente se entregava às visões, à mediunidade, com apoio de toda a família”, enfatiza.
Templo-mãe de Planaltina virou atração turística
Além dos seguidores de Tia Neiva, o templo-mãe atrai milhares de curiosos todos os anos, transformando-se também em ponto turístico. Respeitando horários e costumes, qualquer um pode visitar o local e acompanhar alguns dos rituais. Tia Neiva dizia que a sua filosofia era “unir a todos”, respeitando o livre arbítrio de cada um para professar esta ou aquela crença, uma determinada linha religiosa.
O ponto alto das celebrações no templo-mãe do Vale do Amanhecer é o 1º de maio, feriado do Dia do trabalhador. Para os adeptos da doutrina de Tia Neiva, é o Dia dos doutrinadores, os médiuns, pessoas que se comunicam com espíritos, bons e maus.
Tia Neiva morreu em 15 de novembro de 1985 de uma doença respiratória. Já o local onde fica o templo-mãe foi cercado por centenas de casas, até se tornar um setor de Planaltina, um bairro, batizado de Vale do Amanhecer, que em nada lembra a pacata área rural de quando Tia Neiva e seus primeiros seguidores lá chegaram em busca de paz espiritual.
Neto de mineiro que ajudou a construir Brasília documentou rotina do Vale
Com passagens por alguns dos principais veículos do Brasil, o repórter-fotográfico Lúcio Távora, de 46 anos, é de uma família de adeptos da doutrina do Vale do Amanhecer. Frequentando o templo-mãe regularmente decidiu documentar a rotina do lugar, de 2018 a 2022. O resultado foi um catálogo e uma exposição fotográfica, intitulados “Luz, Cor e Fé”.
O catálogo fotográfico tem 52 páginas, com fotos inéditas de todo o simbolismo do Vale do Amanhecer, suas vestimentas, indumentárias e a beleza de cada detalhe dos elementos que compõem o templo-mãe. Centenas de cópias do livreto foram distribuídas gratuitamente na rede pública do Distrito Federal. Lúcio pretende expor as fotos em outras cidades.
Nascido em Brasília, Lúcio é neto de um mineiro de Carangola que se mudou para Brasília durante a construção da capital, em busca de melhores oportunidades. Um dos seis filhos dele, Onofre, o pai de Lúcio, se tornou adepto da doutrina de Tia Neiva em 1971. Logo o próprio Lúcio e três dos quatro irmãos dele seguiram o mesmo caminho, além de outros familiares.
“É uma doutrina particular, exótica ao olhar de fora. Sofria preconceito por causa dela. Ainda sofro. Mas percebi que era uma bobagem, pois era ali que me encontrava espiritualmente. E fotografar o Vale do Amanhecer e sua gente foi a minha forma de mostrar que não há nada errado com o lugar nem com ninguém que, como eu, uma pessoa simples, trabalhadora, veste aquelas roupas para professar a sua fé. É uma homenagem a essa gente”, ressalta.