Ineditismo

'Estar na Câmara é uma vitória’, diz a deputada Joênia Wapichana

Parlamentar de Roraima avaliou a política ambiental de Jair Bolsonaro e disse que governo tem sofrido um “retrocesso inegável

Por Fransciny Alves
Publicado em 02 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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Primeira deputada federal indígena do país, Joênia Wapichana (Rede-RR), 45, tem sido uma das principais vozes no Congresso na discussão sobre a crise na Amazônia. Entre as diversas agendas com ambientalistas, índios e políticos, a parlamentar de Roraima conversou com O TEMPO e avaliou a política ambiental de Jair Bolsonaro (PSL). Para ela, o governo tem sofrido um “retrocesso inegável” na área e, se uma mobilização – sem ideologias – não for feita, “os danos serão irreparáveis”. Ela diz que indígenas têm pedido impeachment do presidente por conta do tratamento dado às tribos. 


Nas reuniões com ambientalistas e com o presidente
da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nos últimos dias, que pautas vocês conseguiram emplacar em relação a questão da Amazônia?

Nós tivemos hoje (quinta-feira) dois encontros importantes. Primeiro, a minoria junto com oposição, com a sociedade civil organizada, com lideranças indígenas e pessoas que têm se preocupado com a preservação do meio ambiente se reuniram para debater algumas pautas que seriam uma contraproposta para os últimos acontecimentos, ao perigo que está passando a Amazônia. Nós vimos que têm muitas coisas que poderiam ser encaminhadas e foi criado um fórum permanente para agrupar todos e discutir essas propostas. Hoje à tarde, nós tivemos um encontro com os ex-ministros do Meio Ambiente e vimos, no mesmo sentido, a preocupação com a preservação do meio ambiente. Tudo parece que está caminhando na mesma direção, no sentido de que havia uma necessidade de união de várias frentes para verificar aqui dentro da Casa que há um dever de defender e preservar o meio ambiente porque é um bem de uso comum do povo e também é fundamental para a qualidade de vida - tanto a nossa como das futuras gerações. Por isso, foi apresentado um conjunto de medidas programáticas e legislativas justamente para contenção da crise e também uma proposta de reestruturação da política ambiental brasileira que, pela nossa avaliação, ela passa por um período bastante impactante, de retrocesso, de omissão, de irresponsabilidade. 

Como a senhora avalia a política ambiental do presidente Jair Bolsonaro?

É uma política que se contrapõe a todos os avanços de políticas socioambientais que nós já conquistamos em diversos governos. Ela se contrapõe à nossa Constituição, que determina que os povos têm direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, e, por isso, é um bem comum do povo. Nessa linha que avançaram muito as políticas socioambientais no país, com programas que foram se estruturando, com proposições que vinham na linha de combater o desmatamento, a degradação ambiental, e valorizando práticas positivas nos serviços ambientais. Foi justamente nessa linha que se vinha caminhando. Lógico que a gente tinha uns dados que apontavam a necessidade de o Brasil reduzir o desmatamento na Amazônia e, com o tempo, essas políticas que foram propostas foram sendo adotadas como medidas a serem conservadas, valorizadas. Neste governo, nós vimos a coisa reverter. A gente está vendo os últimos desastres na Amazônia e tivemos esses dados que são apontados pelos cientistas, pelos ambientalistas, pelas organizações que estão justamente sendo responsáveis por informações para que as políticas públicas sejam de uma melhor forma desenvolvidas, e a gente vê que esses dados estão sendo negados pelo governo. Um exemplo disso foram os dados apontados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) publicamente demonstrando que houve um avanço de 278% no desmatamento da Amazônia, e a reação do governo ao invés de adotar medidas que fossem conter o desmatamento, foi de negar os dados, demitir o diretor do Inpe (Ricardo Galvão) e agir com ataques sistemáticos às ONGs, mas também mais recentemente aos povos indígenas. E essa omissão de não considerar esses fatos podem ser interpretados numa linha da irresponsabilidade porque, a partir do momento em que um responsável por um serviço público toma conhecimento de alguma irregularidade, de algum crime, ele tem que adotar providências imediatas. Essa medidas adotadas foram totalmente incoerentes com os fatos levantados e com a nossa própria legislação. Tivemos uma reação vingativa com a demissão do diretor do Inpe, e outra reação foi negar que precisava de apoio, descartando parcerias. O Fundo Amazônia, por exemplo, já tinha avançado para dar condições ao desenvolver a proteção na Amazônia. Foi negada a parceira, dito que não era necessário e, inclusive, envolvimento em escândalos de declarações internacionais, não querendo mais cumprir os acordos internacionais que foram deliberados pelo Brasil nas Cops. E, mais recentemente, abrindo informações no sentido de colocar em perigo até mesmo servidores públicos. Um exemplo que eu digo é do Ibama, que foi obrigado a publicar a sua fiscalização antes mesmo de chegar no local. Isso coloca em perigo esses agentes que vão lá analisar se está havendo crime ambiental, como desmatamento, invasão de garimpos, e aí o que aconteceu recentemente foi a queimada do carro do Ibama. Nós estamos vivendo um período de reversão das políticas socioambientais. Nesses oito meses de governo, a imagem do Brasil está sendo, digamos assim, jogada...

A senhora se refere a esse embate com o G7, as discussões públicas entre o presidente da França, Emmanuel Macron, e Jair Bolsonaro? Isso talvez tenha retirado o foco central da discussão, que deveria combater o incêndio na Amazônia?

Ele está reagindo não como chefe de Estado, mas sim com uma posição bastante egoísta, individualista e (como uma pessoa) que não sabe reagir, porque atacar a esposa de um presidente não é a resposta adequada para um chefe de Estado. Ele tenta maquiar realmente o que é prioridade no Brasil, que está passando vexame na frente de outros países, sendo incoerente com a responsabilidade que tem, e a gente só está vendo um desequilíbrio e um desgoverno. Parece-me que não existe nenhuma preocupação de conter essa imagem, porque cada vez mais ele está agindo de uma forma individualista, colocando em risco agora não somente a questão ambiental – porque a gente está vendo que a Amazônia queimou, está pegando fogo, uma sociedade inteira se uniu em prol disso –, mas agora até mesmo a base aliada do governo está percebendo o que está se passando. Nos últimos dias, a gente tem visto que estão sendo extremamente prejudiciais ao meio ambiente. E isso é um resultado direto de oito meses de uma política ambiental equivocada, que pode ser prejudicial e até mesmo criminosa. Esse atual governo está desmontando todo o sistema e legislação de preservação ambiental do Brasil. A gente tem prova de que a maior floresta tropical do mundo está pegando fogo, e o governo está preocupado em atacar os povos indígenas. Recentemente, fez declarações no encontro de governadores de que vai rever a demarcação de terras indígenas.

E qual tipo de retorno a senhora recebe da comunidade indígena a respeito das teses que são levantadas por membros do governo, como a de que as ONGs seriam as responsáveis pelo aumento de queimadas na Amazônia em conluio com entidades internacionais para tirar a soberania do Brasil sobre a floresta?

O que eu tenho visto bastante é indígenas pedirem ‘impeachment já’. Mas, como nós ainda não temos uma representação política, está na hora de a sociedade começar a analisar o tipo de governo que a gente está vendo. Esses fatos que são colocados na mídia e até mesmo absurdos, delírios, de dizer que a terra é plana, são coisas que a gente não entende como conseguiram colocar uma pessoa no poder do mais alto cargo do Brasil assim. Os cientistas, a Nasa, estão apontando que há um avanço no desmatamento, e até mesmo o agronegócio já está percebendo que entraram na fria e que a política desastrosa que ele está adotando está atingindo, principalmente, os negócios, as questões econômicas. O G7 está se posicionando, e há uma campanha de boicote aos produtos brasileiros, colocando em risco o nome que o Brasil tem em vários produtos de exportação que vão recair também na sociedade brasileira. Será que eles estão errados? É o governo? Quem está provocando isso? Ontem mesmo eu falei na tribuna que este é o governo da teoria do caos. A gente tem visto que realmente ele está trazendo o retrocesso em tudo o que se avançou e, se a gente não se mobilizar para frear os danos, a gente não vai conseguir reverter. O momento agora não é de ficar defendendo ideologias de partidos A ou B, mas sim defender o meio ambiente. Se a gente não fizer isso, vamos colocar em risco a vida não só humana, mas de seres, de biodiversidade que até mesmo são desconhecidas para muitos e que estão dentro da Amazônia. 

E o que os índios trazem para a senhora dessa situação como um todo?

Primeiro, que é um governo anti-indígena, porque ter um pensamento retrógrado desse jeito, que acha que indígena tem que abrir mão dos seus direitos para ser cidadão brasileiro... É no mínimo anti-indígena, racista. Há uma série de imposições que a gente vê que não contribui em nada para o desenvolvimento do país, para a inclusão, para a participação social. Só alimenta e propaga o ódio, a intolerância. E contribui, inclusive, para a violação de direitos, como a invasão das terras indígenas, como o pensamento de exploração de recursos naturais e que hoje são fomentados com base em declaração do presidente. Se o presidente fala isso pra toda a nação brasileira, que os índios vivem num zoológico humano, que não têm direito à demarcação de terras, que precisa abrir para mineração... É um incentivo à prática de violação de direitos dos povos indígenas. Na prática, contribui com os crimes que são cometidos, a partir do momento que se acha que está impune. Mas, na verdade, não está. Invadir terras indígenas, principalmente madereiros e garimpeiros, isso é crime e vai ter que responder por isso. Agora, toda a autoridade que é responsável por apurar ela não pode tapar os olhos para a situação que está. 

A senhora é a primeira deputada indígena do país. Qual o balanço desses oito meses de mandato?

Como mulher indígena, parece-me que as coisas acontecem no momento certo. O povo indígena de Roraima se mobilizou, analisou que era necessário ter uma representação aqui, na Câmara, porque a gente só ouvia falar em propostas negativas para nós. E, sempre quando vínhamos a Brasília, a gente ficava do lado de fora (do Congresso), dependendo da autorização de algum parlamentar que tivesse dó da gente ou tivesse solidariedade e pudesse intervir por nós nos seus debates. Então, nós fizemos uma análise disso, e a Assembleia Indígena resolveu: por que não a gente participar do processo eleitoral? A minha presença aqui é um símbolo de vitória, por mais que seja num período conturbado e sombrio como o que a gente está vivendo agora, foi uma vitória porque era necessário ter uma voz indígena aqui na Câmara. Então, eu vejo de uma responsabilidade a minha presença porque eu não estou aqui individualmente, eu tenho um coletivo que me colocou aqui...

E também uma responsabilidade dos povos indígenas... Não só de Roraima.

Então, eu parto de Roraima porque falo do processo eleitoral. Mas, depois que eu assumi, eu tenho tido esse compromisso com os povos indígenas do Brasil. Não é de hoje que atuo na defesa dos direitos indígenas. Por isso, eu digo que é uma responsabilidade muito grande, principalmente minha como mulher indígena, que rompe todo o paradigma de racismo, clima de intolerância, de machismo que muitas vezes eu tenho que enfrentar. Não é que eu enfrentei, eu ainda enfrento. Muitas pessoas não querem ouvir os indígenas, não conseguem entender que as mulheres também são parte de uma sociedade que merece ser representada. Mas nós temos nossos valores, nossas diferenças culturais, e isso a gente precisa colocar.

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