Marcus Pestana

Precatórios, política fiscal e direitos do cidadão

A PEC promove um verdadeiro calote disfarçado


Publicado em 21 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
 
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Da presente crise multifacetada emergem as verdadeiras preocupações da população brasileira. O interesse do cidadão está preso à vacinação ainda morosa, ao desemprego em níveis alarmantes, à miséria e à fome agravadas pela pandemia e aos passivos que ficarão, como a interrupção do processo educacional de crianças e jovens pobres.

A questão fiscal tem tudo a ver com essas demandas sociais. O Orçamento Público explicita as formas de arrecadação das receitas por meio dos tributos e o perfil do gasto público. Isso é central na democracia. A democracia e o Orçamento Público nasceram juntos como uma forma de dar transparência e previsibilidade no financiamento das atividades do Estado.

Há muito, o Brasil enfrenta uma profunda crise fiscal. O Estado se agigantou, e os déficits se acumularam com seus conhecidos impactos. Como não conseguimos produzir uma verdadeira reforma do Estado e de sua organização administrativa, vamos, de soluço em soluço, adotando gambiarras para equacionar o desequilíbrio das contas do governo. Nesse cenário, os investimentos são pífios, a qualidade do gasto e das políticas públicas é comprometida, e o retorno para a sociedade que paga impostos, cada vez menor.

O atual governo acenava com uma política liberal de redução da máquina estatal, promoção das reformas administrativa e tributária e responsabilidade fiscal. Mas o discurso inicial foi abandonado, e restou uma percepção clara de falta de rumos. A reforma tributária transformou-se num projeto de lei de aumento do Imposto de Renda, que não resolve nenhum dos problemas essenciais e cria novas distorções.

Sem conseguir promover reformas estruturantes na tributação e no gasto e pressionado a expandir despesas em ano eleitoral, propôs ao Congresso Nacional a PEC 23/2021, a PEC dos Precatórios, que abala ainda mais a credibilidade de nossa política fiscal, promovendo um verdadeiro calote disfarçado em direitos líquidos e certos de cidadãos brasileiros. Os precatórios são a materialização de dívidas do Estado com empresas e pessoas obtidas por decisões judiciais irreversíveis. A PEC dos Precatórios propõe o pagamento à vista de precatórios de pequeno valor e o parcelamento em dez anos dos demais.

Vou contar um caso familiar para exemplificar o absurdo da proposta. Meu pai tinha uma fazenda com uma pequena produção de café, em Espera Feliz, na fronteira de Minas Gerais com o Espírito Santo, na divisa do Parque Nacional do Caparaó. Cuidava com carinho da terra, prevenia incêndios, protegia a mata e as cachoeiras. Em 1998, o Ibama resolveu desapropriá-la unilateralmente. Em 2002, foi dada entrada em processo judicial discutindo o valor da desapropriação, e o Ibama tomou posse do imóvel. Meu pai faleceu em 2008. O processo percorreu a maratona judicial de 20 anos, inclusive chicanas jurídicas como o recurso do Ibama ao STF, sendo que todos sabiam que não era matéria constitucional. Hoje a fazenda transformou-se num matagal descuidado, e o precatório deve finalmente sair. Quando sair, 23 anos depois da desapropriação, o direito líquido e certo assegurado pelo Poder Judiciário será objeto de um parcelamento em dez anos. Milhares de brasileiros financiarão o espaço fiscal para novos gastos de um Estado voraz e perdulário.

Já passa da hora no Brasil de repensarmos as relações entre o Estado e a sociedade.

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