Opinião

João Alberto e o Brasil que o governo não vê

Enfrentar o racismo é obrigação de qualquer gestor público


Publicado em 01 de dezembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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As declarações do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, de que não existe racismo no Brasil, merecem o repúdio de todos e todas que respeitam a nossa história. Elas não são diferentes das opiniões do presidente, o que não surpreende, já que o negacionismo é a marca maior dessa administração.

Além de minimizar as recomendações de saúde, a dupla que nega como golpe 1964 nega também que um país que conviveu mais da metade de sua história com a escravidão – inclusive como uma das suas principais atividades econômicas – não traz sequelas profundas daqueles mais de 300 anos. 

O racismo não apenas existe, como é instituicionalizado. Nossas primeiras constituições já asseguravam o direito à propriedade como inalienável, independentemente se ela fosse um ser humano escravizado ou não. 

Arquivos da escravidão no Brasil foram queimados para que sumissem da história, e as mesmas oligarquias foram as que deram as cartas na República Velha. Ao povo negro, foi destinado o abandono, o preconceito, a criminalização e um eterno olhar de desconfiança. O voto censitário excluía as mulheres e cidadãos sem renda, e a Lei Saraiva, de 1881, impedia pessoas não letradas de votar, o que só mudou em 1985. Alijados da oportunidade de boas remunerações e de se alfabetizar, muitos negros e negras também não puderam eleger quem os representasse.

Reconhecer que o racismo é um pilar da nossa formação é o primeiro passo para não mais perpetuar uma cultura que afronta a nossa diversidade. Por mais sensibilidade que sempre julguei ter, foi na CPI do enfrentamento ao homicídio de jovens negros e pobres, que presidi na Câmara dos Deputados, que convivi com depoimentos e realidades que me fizeram tomar a decisão de somar com o que puder nessa luta. 

Além de visitar episódios e legislações, podemos atestar o racismo pelos dados da segurança pública. Segundo o Atlas da Violência 2020, o número de homicídios de pessoas negras cresceu 11,5% nos últimos dez anos, enquanto o homicídio de brancos caiu 12,9% no mesmo período.

Mourão, além de negar a realidade, vai contra a própria Câmara, que em 2015 reconheceu racismo estrutural no Brasil e um genocídio contra a população negra. Um dos projetos da CPI é a PEC 126/2020, que cria o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos e que está pronta para ser votada. Entre todos os projetos que apresentei, a aprovação deste será foco da atuação em 2021. 

É preciso alocar recursos em políticas públicas que incluam, muito além de apenas conscientizar. Os orçamentos públicos precisam prever investimentos na superação deste que é um problema presente em muitos outros, mas que precisa ser enfrentado com foco. No fundo, 2% do Imposto de Renda e do IPI seriam recolhidos para reparar danos e promover ações discutidas em conjunto com a sociedade.

João Alberto e sua família merecem, além de indenização, um pedido formal de desculpas do Estado brasileiro. As comoções desta morte em Porto Alegre, no entanto, não podem ganhar apenas as redes e ruas. O Parlamento brasileiro, que já admitiu o racismo estrutural uma vez, tem o dever de honrar a nossa história e de fazer justiça, aprovando uma agenda de projetos de enfrentamento do racismo. Ainda precisamos de uma segunda abolição.

 

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