Política em Análise

Divergências sobre o voto impresso

Bancadas são favoráveis, partidos são contra, técnicos apontam risco à inviolabilidade, mas parte da população desconfia do sistema atual

Por Ricardo Corrêa
Publicado em 29 de junho de 2021 | 09:58
 
 
 
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O título deste artigo não é o mais exato do ponto de vista técnico, mas foi usado pelo fato de que hoje a adoção do voto eletrônico com impressão no Brasil foi simplificada como a volta do voto impresso. Como é assim que as pessoas buscam e discutem o assunto, usei o termo de modo a chegar naqueles que se interessam pelo debate. Acalorado, aliás, por estar contaminado pelo componente ideológico. O voto eletrônico com impressão não é unanimidade nem na esquerda nem na direita e gera embates dentro de praticamente todos os partidos do Brasil. Enquanto presidentes das legendas se colocam majoritariamente contrários, deputados são, até então, favoráveis. É discussão capaz de gerar inclusive fissuras internas nas siglas.

Na semana passada, presidentes de 11 partidos se colocaram contrários à adoção da impressão nas urnas eletrônicas. Ontem, o PT também fechou questão na mesma linha. São, portanto, 12 partidos, que possuem 379 deputados (dos 513 da Câmara), defendendo que não é hora de se discutir isso. Em condições normais, a proposta estaria morta. Enquetes feitas com parlamentares, porém, indicam que a maioria dos que hoje têm mandato defende a mudança. Como o voto é aberto, em tese, os comandos partidários têm capacidade de ao menos minimizar essa preferência pela adoção da urna com impressão, impedindo o avanço do tema na Câmara e no Senado. Porém, sempre há espaço para que os parlamentares se articulem para alterar a postura das cúpulas de suas siglas.

Engana-se quem pensa que entre os presidentes de partidos que fecharam questão contra o voto com impressão estão apenas oposicionistas. O grupo é bastante heterogêneo. Possui, por exemplo, Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Os partidos comandados por esses dois políticos tradicionais são os pilares centrais de sustentação do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Além deles, na lista também está Marcos Pereira, que comanda o Republicanos, ligado à Igreja Universal e que, embora tenha experimentado um relativo afastamento, ainda guarda relações com Bolsonaro. Há também partidos que estão em cima do muro. Possuem vários oposicionistas mas também cargos no governo ou alas governistas, como o PSL, o PSD, o MDB e o DEM. Completa a lista dos onze que se reuniram contra o voto com impressão: o Avante, o Solidariedade, o Cidadania e o PSDB. Além deles, como dito, o PT é hoje contrário à mudança nas urnas eletrônicas. Do lado dos favoráveis também há partidos de esquerda e não apenas o grosso da base bolsonarista. O PDT de Ciro Gomes e o PSB, que filiou agora Marcelo Freixo (ex-PSOL) e Flávio Dino (ex-PCdoB), já deram apoio à iniciativa.

É preciso tratar da questão sem paixões. Afinal, está em jogo um sistema eleitoral que precisa ter a confiança de todos para o bem da democracia. Embora seja um fato que parte da base do presidente veja nesse debate uma chance de tumultuar a corrida eleitoral e deslegitimar uma eventual derrota, é também um fato, apontado nas pesquisas, que cerca de 30% a 40% da população concorda com a adoção da urna com impressão. Significa dizer que uma parcela bastante considerável da sociedade vê, no mínimo, alguma dúvida no sistema atual. Isso não pode ser ignorado. Eu particularmente sou daqueles que acreditam na urna eletrônica, sobretudo pelo fato de que há alternância nos resultados, que na mesma eleição elege-se 53 deputados do PSL e 53 do PT, governadores do Novo ao PCdoB. Não faz muito sentido achar que há fraude num cenário como esse. Além do mais, nenhuma prova de qualquer ilicitude foi até hoje apresentada. Mas, a despeito de minha posição pessoal, uma democracia só é estável se a confiança no sistema de votação adotado for unânime ou estiver perto da unanimidade. Nesse sentido, adotar o voto impresso pode, sim, contribuir com a democracia.

Por outro lado, não se pode, independentemente da posição política que cada um tem, deixar de se reconhecer que a inviolabilidade do voto é sagrada e que há mais riscos com essa modalidade do que com a atual. Hoje, as urnas eletrônicas não individualizam os votos. Ao final da votação, emitem apenas um boletim de urna que aponta quantos votos cada um teve naquela urna para os diversos votos. Na proposta hoje colocada de voto com impressão não é bem assim. O eleitor faz seus votos na urna eletrônica, aparece uma tela de conferência de todos eles (presidente, governador, senador, deputado federal e deputado estadual) e aí ele clica para confirmar e imprimir. Esse comprovante fica dentro da urna. Aparece apenas por um visor de acrílico ou vidro. Contudo, ele apresenta toda a lista de votação de um eleitor (sem sua identificação, obviamente). Assim, um eventual comprador de voto poderia combinar com o eleitor: você vota em mim para deputado estadual, anula para federal (ou vota em fulano) e senador, vota em fulano para governador etc. Depois, como os candidatos teriam acesso a esses votos em uma eventual auditoria, seria possível ao comprador de voto conferir se o eleitor de fato fez o combinado, a partir da conferência se está lá aquela das infinitas combinações de voto entre os vários cargos. Assim, estaríamos facilitando a compra de voto. Isso sem falar nas dificuldades adicionais de armazenamento, contagem, risco de perda de votos, extravios de caminhões de votação ou os problemas decorrentes da própria vontade de determinados grupos de sabotar o processo. Bastaria a um candidato que sabe que vai perder orientar seus grupos a, na hora da votação, alegarem que o papel que aparece no visor não é igual ao voto que deu na urna, chamando a polícia etc. Viraria uma loucura, principalmente nas eleições municipais, decidas por poucos votos.

O debate que temos hoje precisa tratar desses temas para que possamos chegar num sistema confiável e no qual toda a população acredita. Fazer isso em um curso espaço de tempo que resta até a eleição, e implementá-lo é tarefa quase impossível. Principalmente agora que o grupo dos contrários ganhou a força do comando das legendas, o que pode ajudar a empurrar as discussões. Significa dizer que, muito provavelmente, não teremos voto com impressão nessa eleição ou que, caso tenhamos, ele seja apenas por amostragem (o que até entendo que pode ser razoável para diminuir um pouco a pressão nesse sentido). Assim, o debate continuará colocado no momento da ida às urnas, o que é sempre um risco à democracia.

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