Política em Análise

Liberação de jogos não é o que parece

Texto que libera bingos, cassinos e jogo do bicho inclui reserva de mercado e não deve eliminar a ilegalidade

Por Ricardo Corrêa
Publicado em 24 de fevereiro de 2022 | 13:54
 
 
 
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Quem acompanha apenas lateralmente o debate sobre o projeto que, formalmente, libera os jogos no Brasil, pode imaginar que estamos diante de um texto que vai tirar da ilegalidade as atividades que já vemos por aí e cobrar impostos por ela. É até um pouco isso mas, quando se analisa o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, percebe-se que não é exatamente como os defensores da ideia fazem parecer crer, nem como seus detratores pintam para condená-lo. A regulamentação do jogo, como foi colocada no texto-base aprovado na madrugada desta quinta-feira (24), apenas cria uma reserva de mercado oficial para grandes investidores no setor. Muita coisa continuará como está hoje.

Em meio a tantos embates para que fosse aprovado, com divisão da base aliada, e uma aliança entre evangélicos e partidos de esquerda para tentar conter a iniciativa de Arthur Lira (PP-AL), o texto aprovado pela Casa ficou bem distinto do que inicialmente imaginado. Esse texto ainda deve ser alterado ao longo desta quinta-feira (24), mas alguns pontos mais estruturais chamam a atenção. Um deles é o fato de que as apostas online, justamente o tema que motivou a aceleração do debate - já que grandes players mundiais do setor operam e fazem publicidade abertamente no país - ficaram ainda na dependência de outra regulamentação. O projeto aprovado na Câmara determina que esse tipo de atividade ainda deva ser tratado em regramento específico pelo Executivo, que tem posições dúbias sobre o assunto. Na prática, por enquanto, neste caso específico, deve ficar tudo como está.

Quanto aos outros pontos, chama mais atenção os diversos mecanismos existentes no texto de modo a criar uma reserva de mercado para grandes investidores. O popular jogo do bicho, por exemplo, vai ser licitado para apenas um operador a cada 700 mil habitantes e este operador precisa ter um capital de R$ 10 milhões para concorrer a uma dessas licenças. Não é preciso dizer que todos os demais vão continuar operando na ilegalidade, como já funciona atualmente. As regras também criam essa reserva para os cassinos. Serão apenas dois em Estados como Minas Gerais e Rio de Janeiro e três em São Paulo. Isso com os operadores sendo obrigados a ter um capital de R$ 100 milhões. E como os caça-níqueis como conhecemos hoje continuarão proibidos e as máquinas para jogo eletrônico, que não poderão receber dinheiro em espécie, também terão que ficar dentro dos cassinos, não se deve imaginar que o jogo ilegal nas que conhecemos hoje deixará de existir.

Os posicionamentos colocados pelos parlamentares, como de costumes, tiveram tom exagerado. Nada é nem como um lado fez crer, nem como o outro garante que é. Por um lado, o discurso da bancada religiosa e de partidos de esquerda de que o projeto pode trazer a aceleração do vício em jogo na população e prejudicar os mais pobres não faz sentido considerando os aspectos já colocados aí. Hoje já se joga na loteria, nas apostas online e, principalmente, na ilegalidade. Ninguém terá uma facilidade tão maior assim para apostar do que já vemos atualmente. Os mais ricos talvez, nos cassinos luxuosos que serão construídos. De outro lado, porém, é ingênuo imaginar que o país se tornará o paraíso da jogatina, com um turismo pujante vindo de todas as partes do mundo. Há cassinos por toda a parte no planeta. Provavelmente, esse turismo será interno e deslocado de outros destinos dentro do próprio país.

Por fim, chamou bastante atenção a posição dúbia do governo no tema. Jair Bolsonaro já disse, no passado, que vetaria o projeto caso fosse aprovado pelo Congresso. Seu governo, porém, se divide. Há ministros claramente favoráveis, como Ciro Nogueira (Casa Civil) e Gilson Machado (Turismo). Há outros fortemente contrários, como Anderson Torres (Justiça) e Damares Alves (Mulher e Direitos Humanos). Por isso, Bolsonaro recolheu sua opinião pública. Deixou de falar abertamente que irá vetar. Fez apenas, de última hora, pedidos via whatsapp para que os parlamentares não aprovassem o texto. Ao menos na Câmara, não deu certo, criando mais um constrangimento para o presidente em ano eleitoral. Vai desagradar o presidente da Câmara, Arthur Lira, e boa parte de sua base aliada, ou a bancada evangélica? Para ele, o ideal é que o Congresso não conclua essa votação.

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