Política em Análise

Normalização do absurdo no Brasil

De tanto ver escândalos acontecerem, país passou a achar normal coisas que não estão nem perto do razoável, como a postura do governo no combate à pandemia

Por Ricardo Corrêa
Publicado em 05 de janeiro de 2021 | 09:47
 
 
 
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Nos últimos anos e, em especial, nos últimos meses, a sociedade brasileira vivenciou tantos absurdos que passou a achar normais coisas que, absolutamente, não são nem mesmo razoáveis. Escândalos estão sendo tratados apenas como meras polêmicas. Então, por mais óbvio que seja dizer algumas dessas coisas, é preciso mais uma vez reforçar o quanto o que acontece no âmbito do combate à pandemia e nos rumos políticos do país não podem ser aceitos em nenhuma hipótese.

Em primeiro lugar, é claro que não é normal que mais de 50 países do mundo estejam vacinando suas populações e um país como o nosso, que é uma das maiores economias do mundo e tem tradição de programas de imunização não esteja vacinando ninguém, não tenha data para começar e nem doses já compradas para tal.

Não é normal que a gente não tenha nem seringa suficiente no nível nacional, após um ano de pandemia e meses de certeza da vinda da vacina, como se tivéssemos sido surpreendidos com um problema de última hora. Ou que o país perca testes de vacinação, mesmo após terem suas validades ampliadas, enquanto os Estados e prefeituras sofrem com a falta deles e somos uma das nações que menos testa no planeta.

Não é normal que, mesmo às vésperas de uma catástrofe de saúde pública, com o esperado aumento dos casos que vemos na Europa após o surgimento de cepas que espalham o vírus em velocidade maior, ainda estejamos vendo autoridades, como o presidente da República, defender aglomeração, criticar o uso de máscaras e atacar os governadores e prefeitos que fecham as cidades.

Não é normal que o presidente insista em remédios sem comprovação científica, como fez hoje pela manhã com a ivermectina e fez durante todo 2020 com a cloroquina, e faça questionamentos ridículos à vacina, citando até a transformação da população em jacarés, o que fez o Brasil passar por uma humilhação mundial. Ou que o Exército gaste fortunas para encher seus galpões de comprimidos de cloroquina que não servem pra nada no combate à pandemia.

Não é normal, acima de tudo, que a gente não tenha uma liderança nacional sobre o tema. Que quando vemos presidentes de outros países anunciando medidas para todo seus territórios, aqui tenhamos que ver prefeitos e governadores tomarem decisões conflitantes, sem qualquer planejamento ou lógica para o país.

Não é normal que em meio à maior ameaça à saúde pública no Brasil em um século o ministro da Saúde pouco seja notado e esteja há 13 dias sem fazer uma declaração sequer, enquanto se agrava a situação no mundo inteiro e especialistas clamam, em entrevistas e em redes sociais, por medidas urgentes para combater uma tragédia cada vez maior e uma piora cada vez mais inevitável.

Mas, com eu disse, o Brasil normalizou o absurdo e não apenas na questão do combate à pandemia. Afinal, também não é normal ver um presidente da República ameaçar o Ministério Público do Rio de Janeiro como fez em uma live recente.

Não é normal que advogados do filho do presidente se reúnam com membros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para traçar estratégias de defesa que produzam uma vingança na Receita Federal e possam livrar o denunciado por desvio de dinheiro público de punições. Como não é normal a interferência efetivamente realizada na Receita com esse suposto fim.

Não é normal que o presidente da República pose para fotos com um acusado de lavar dinheiro do PCC, a maior facção criminosa em atuação no Brasil, em meio a uma pelada de fim de ano enquanto morriam mais de mil pessoas por Covid, e que essa pelada de fim de ano seja transmitida em rede nacional por uma emissora estatal que exalta o momento patético de um gol marcado pelo presidente.

Não é normal que um presidente chame o governador de São Paulo, o maior Estado do país, de nomes jocosos, como o “calcinha apertada” que usou em uma transmissão online para seus eleitores.

Como não é normal também, é evidente, que esse governador use a vacina como plataforma eleitoral, cada dia fazendo uma promessa diferente quanto a vacina, marcando data para início da imunização antes de pedir o registro à Anvisa ou de divulgar até mesmo a eficácia da vacina.

O absurdo passou a fazer parte da rotina do Brasil – e vimos isso quando um político preso e condenado em duas instâncias tentou disputar uma eleição presidencial – o que contribuiu com a vitória deste que está aí. E quando o juiz que o condenou virou ministro do vencedor que ajudou a construir. Não é normal. Repitam comigo: não é normal.

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