Em novembro passado, o governo da Argentina solicitou ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) a lista de torcedores impedidos de frequentar estádios no Estado. O intuito era impedir o desembarque de brasileiros banidos em Buenos Aires, palco da partida final da Copa Libertadores entre Atlético e Botafogo. 

“Fizemos um esforço enorme, pois isso não está sistematizado até o momento. Precisamos profissionalizar esse sistema e elaborar um cadastro unificado”, explicou, à época, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, então coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (Caocrim).

Cinco meses após o membro do MPMG revelar o pedido, tudo indica que a criação do banco de dados unificado ainda está longe de se transformar em realidade. Apesar disso, diversas esferas do poder público teimam em requentar o assunto. 

“O MPMG articula com o TJMG (Tribunal de Justiça) a proposta da apresentação de um cadastro estadual de pessoas proibidas de comparecimento e proximidade das arenas, bem como de qualquer local em que se realize evento esportivo”, resume o órgão por meio de nota.

A resposta foi dada após O TEMPO Sports questionar quantas pessoas estavam proibidas de frequentar estádios na ocasião do pedido do governo argentino, se essas informações já estão sistematizadas e quantos indivíduos, atualmente, estão barrados dos campos de futebol em Minas Gerais. 

A falta de posicionamento objetivo do MP acerca da questão suscitada é mais um indicativo de que, não raro, iniciativas prometidas para combater a violência nos estádios costumam ficar apenas na teoria. É justamente esse o objetivo da série “Marcação Cerrada”, que publica nesta sexta-feira (18) a segunda reportagem.

Reincidência reforça desdém pela Justiça e certeza de impunidade

Em 2 de março do ano passado, uma briga entre torcedores de Atlético e Cruzeiro na região do Barreiro, em Belo Horizonte, levou a óbito Lucas Elias Vieira Silva, de 27 anos. Naquele dia, Galo e Raposa jogariam na Arena MRV e no Mineirão, contra Ipatinga e Uberlândia, respectivamente. Após o confronto, foi identificado na confusão um torcedor atleticano de 35 anos, que já havia sido condenado a 17 anos de prisão, em 2013, por formação de quadrilha e participação no homicídio do cruzeirense Otávio Fernandes, de 19 anos, consumado em 2010. 

Em 2023, o homem foi condenado novamente, desta vez, por um ano e quatro meses, em função de ter participado do espancamento de outro torcedor do Cruzeiro, em 2018, no bairro Prado, região Oeste de BH. O caso dessa condenação por crimes no ambiente do futebol é um exemplo, mas não o único.

“A reincidência criminal é um problema que atinge todos os tipos de crime no Brasil, e no futebol não seria diferente. Temos de mudar muita coisa no nosso ordenamento jurídico, porque o mundo de outrora é bem diferente do atual. Tudo muda, inclusive a mentalidade do delinquente. As leis que punem a violência nos estádios e em seus arredores precisam ser aplicadas de forma rigorosa e consistente. A impunidade encoraja a repetição desses atos”, avalia o coronel Gedir Rocha, especialista em segurança pública

Coronel Gedir Rocha destaca que a impunidade encoraja a repetição dos atos violentos

 

Em março de 2024, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recomendou o banimento temporário das principais organizadas de Atlético e Cruzeiro dos estádios do país em dias de jogos, incluindo o raio de 5 km do local do evento esportivo. A punição, motivada por atos violentos, proíbe o porte ou a exibição de peças alusivas aos grupos. A sanção alvinegra vence em março de 2026, e a estrelada, em março de 2028.

Na prática, porém, membros das duas facções continuam frequentando estádios livremente e são vistos com frequência nas arquibancadas. Inclusive, ocupando o tradicional espaço utilizado em jogos dos seus times, tanto na Arena MRV quanto no Mineirão. 

“Os clubes deveriam ser responsabilizados por atos de violência dos seus torcedores, especialmente quando há conivência ou falta de medidas preventivas. Já as organizadas violentas devem ser identificadas, monitoradas e, em casos extremos, dissolvidas”, sugere o especialista em segurança pública.

O coronel Gedir atuou por 30 anos na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) no combate aos mais diversos tipos de crimes e formas de violência. No entendimento dele, é essencial ter atuação multifacetada para enfrentar os problemas nos estádios de futebol. Mais do que isso, é crucial abordar as “causas profundas” que refletem os problemas da sociedade. 

“É preciso reconhecer que o ocorrido no ambiente do futebol é reflexo de uma sociedade onde a violência, a impunidade e a corrupção são problemas estruturais. Combater a violência nos campos exige um esforço mais amplo para fortalecer o Estado de direito, promover a educação, combater a desigualdade social e cultivar valores de respeito e civilidade em toda a sociedade”, aponta. 

Câmara dos Deputados discute PL para criar lista unificada

A Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados aprovou, no fim do ano passado, o Projeto de Lei (PL) 6.090/2023, que cria a lista única de torcedores banidos de frequentar estádios. O sistema deverá ser elaborado pelo poder público, e os condenados serão cadastrados em um banco de identificação biométrica para serem denunciados à polícia caso sejam flagrados em dias de jogos. O PL agora vai passar por análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

“Apostar apenas na criminalização pontual do torcedor, como faz o PL 6.090/2023, é uma resposta simplista para um problema complexo”. A avaliação é de Gustavo Lopes Pires de Souza, advogado, professor e mestre em direito desportivo. No entendimento do especialista, a mudança passa pela reformulação sistêmica do ambiente do futebol, priorizando a segurança coletiva e o respeito à dignidade.

“O ideal seria um projeto que combinasse ações educativas, medidas estruturais e, sim, punições quando necessárias, mas sempre como último recurso, não como política pública principal. A segurança deve ser garantida sem sacrificar os direitos fundamentais e sem deixar de lado a responsabilidade dos organizadores, clubes e poder público”, aponta Gustavo Lopes.

Mestre em direito desportivo, Gustavo Lopes Pires de Souza defende mudança estrutural no ambiente do futebol

Lei Geral do Esporte define crimes e penas

A Lei Geral do Esporte (14.597/2023) trata, no artigo 201, dos “crimes contra a paz no esporte”. Estão previstas sanções para quem promover tumulto ou praticar ou incitar a violência nos estádios, num raio de 5 km do local da partida, bem como durante o trajeto de ida e volta do local. A pena em caso de condenação é reclusão de um a dois anos, além de multa.

A lei estabelece que também será punido o torcedor que portar, deter ou transportar, no interior da arena esportiva, em suas imediações ou no seu trajeto, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência e participar de brigas de torcidas. 

A pena por reclusão deverá ser convertida no impedimento de comparecimento aos estádios (de três meses a três anos), na hipótese de o agente ser primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de condutas previstas nesse artigo.