Sem julgamento

Cruzeiro e China Azul esperam há 437 dias por justiça

Ex-dirigentes da Raposa denunciados pelo Ministério Público de MG pelo cometimento de crimes ainda não foram sequer citados em ação na 7ª Vara Criminal de BH

Por Rodrigo Rodrigues
Publicado em 17 de janeiro de 2022 | 05:00
 
 
 
normal

O rebaixamento inédito do Cruzeiro à Segunda Divisão, em 2019, expôs feridas até então desconhecidas da torcida. Não só pelo revés desportivo, mas pela caótica saúde financeira do clube, abalada por gestões questionáveis sob vários aspectos. Especialmente, a capitaneada por Wagner Pires de Sá, entre 2018 e 2019. Apesar da revolta da China Azul em relação a alguns dos responsáveis por colocar a Raposa numa espécie de buraco sem fundo, até o momento, nenhuma punição na esfera criminal foi imposta aos ex-dirigentes.

Desde 6 de novembro de 2020, quando o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) apresentou denúncia contra nove pessoas que, no entendimento do órgão, cometeram crimes de falsidade ideológica, apropriação indébita e formação de organização criminosa, o processo em tramitação na 7ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) praticamente não “andou”.

Passados 437 dias (1 ano e dois meses), a ação criminal número 0770776-11.2019.8.13.0024 continua em fase de expedição dos mandados de citação. Na prática, significa que os nove réus no processo sequer foram chamados para apresentar suas defesas.

Foram denunciados, além do ex-presidente Wagner Pires de Sá, os ex-diretores Itair Machado (vice-presidente de futebol) e Sérgio Nonato (diretor geral). Os demais réus são os empresários Cristiano Richard dos Santos Machado, Carlos Alberto Isidoro (Carlinhos Sabiá, ex-jogador) e Wagner Antônio da Cruz, trio ligado a negócios no futebol. Completam a lista Ivo Gonçalves, pai do atleta Estevão William, de 14 anos, que trocou a Raposa pelo Palmeiras, Christiano Polastri Araújo, ex-presidente do Ipatinga, e Fabrício Visacro, ex-assessor de futebol estrelado e cunhado de Itair Machado.

Procurado, o TJMG informou, por meio da assessoria, não poder fornecer mais detalhes sobre a ação, bem como não respondeu se o tempo entre o recebimento da denúncia e a intimação dos réus é o “usual” em ações semelhantes. “O processo tramita em segredo de Justiça, não sendo possível responder aos questionamentos”, alega a Justiça mineira.

MP aponta desvio de R$ 4 milhões para compra de apartamento de alto luxo

Além dos crimes apontados pelo MPMG, o órgão requer o ressarcimento de R$ 6.539.360,00 ao Cruzeiro, que teriam sido apropriados indevidamente pelos réus. A promotoria pede também a reparação no valor correspondente a 100% do prejuízo efetivamente causado, pelo dano moral coletivo causado. No total, R$ 13.078.720,00 é o valor solicitado pela promotoria para que seja devolvido aos caixas do clube.

Conforme a denúncia, cerca de R$ 4 milhões teriam sido utilizados por Itair Machado para comprar um apartamento de alto luxo no bairro Vila da Serra, em Nova Lima. A transação, sustenta a acusação, contou com a participação do empresário Cristiano Richard dos Santos, que simulou um empréstimo ao clube, com o aval de Itair. Na prática, porém, o empresário teria recebido parte dos direitos econômicos de dez atletas.

O pagamento do imóvel em benefício de Itair teria ocorrido da seguinte forma, conforme o MPMG. Parte do valor dos direitos econômicos dos jogadores negociados, teriam sido pagos por Cristiano Richard por meio de transferências bancárias para quitar uma fatia do valor devido por Itair na aquisição do apartamento. A maior parte, R$ 3.857.500,00, foi transferida diretamente para a construtora do empreendimento. O restante, R$ 57 mil, para pagamento dos honorários dos corretores que participaram da negociação.

'Nunca desviei um centavo', defende-se Itair Machado

Itair Machado participou ativamente da campanha de Wagner Pires de Sá para a presidência do Cruzeiro. Com a vitória sacramentada em outubro de 2017, foi nomeado vice-presidente de futebol, com salário de R$ 180 mil mensais e direito a parcela extra em dezembro, semelhante a um 13º salário.

Ele assumiu o cargo em dezembro daquele ano, mas o MPMG afirma que ele recebeu R$ 540 mil de forma retroativa, pelos serviços prestados como “cabo eleitoral”. O valor equivale a três meses do salário pactuado, exatamente o período entre a eleição e a posse. O pagamento, descreve o MPMG, teria sido autorizado por Wagner.

Ao ser questionado sobre os crimes denunciados pelo MPMG, incluindo a compra do apartamento com dinheiro da Raposa, Itair nega. “Nunca desviei um centavo do Cruzeiro, e no processo na Justiça vai ficar provado”, assegura. “Fui vítima de uma guerra política que existe até hoje no clube”, completa.

Até a publicação desta reportagem, os ex-dirigentes Wagner Pires de Sá e Sérgio Nonato não foram encontrados para comentar a denúncia do MPMG, a exemplo dos outros seis denunciados. Por isso, o espaço encontra-se aberto caso cada um deles queira se manifestar.

Itair acusa Sérgio Santos Rodrigues, que promete processá-lo

“Vai fazer parte (da matéria) que o presidente Sérgio (Santos Rodrigues) está sendo investigado por ter corrompido os delegados?”, foi um dos questionamentos feitos por Itair Machado, ao ser perguntado sobre a ação na qual é um dos réus na 7ª Vara Criminal de BH.

Neste caso, porém, ele se refere à apuração da corregedoria da Polícia Civil, iniciada após denúncia dele próprio, na qual acusa agentes policiais por desvio de conduta na operação denominada Segundo Tempo, deflagrada em abril do ano passado. Trata-se de um desdobramento da investigação que o tornou réu, em 2020.

“Estou aguardando a apuração da corregedoria da Polícia Civil para comprovar se houve corrupção por parte dos delegados que me acusaram”, salienta Itair Machado. “Os delegados foram afastados do caso e transferidos”, garante, sem, contudo, mencionar os nomes.

Por meio da assessoria, a Polícia Civil informou que, a partir desta segunda-feira (17), será possível acionar a autoridade policial responsável pelo caso, para verificar o andamento da investigação. Assim que houver retorno, a reportagem será atualizada.

Além de mencionar o suposto caso de corrupção na polícia, Itair dispara: “várias pessoas da imprensa têm medo do Sérgio porque ele e o pai mandam na polícia e no TJ (Tribunal de Justiça)”.

Ao ser confrontado com a afirmação, o presidente Sérgio Santos Rodrigues reagiu. “As afirmações feitas pelo réu (Itair) serão levadas à Justiça”, assegura. No entanto, instado a comentar a ação que tem como objetivo apurar responsabilidades nos eventuais crimes cometidos contra o Cruzeiro, optou por não se manifestar.

'Organização criminosa' lesou o clube, acusa o MP

Na denúncia oferecida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) contra os três ex-diretores do Cruzeiro e outras seis pessoas, é refeito o caminho de eventuais irregularidades perpetradas por aqueles que comandaram o clube entre 2018 e 2019.

Com base no inquérito conduzido pela Polícia Civil, a 11ª Promotoria de Justiça de BH aponta que Wagner Pires de Sá, Itair Machado e Sérgio Nonato “construíram e integraram organização criminosa ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente”.

O objetivo, acusa o MPMG: “obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, especialmente econômica, mediante a prática de crimes em detrimento ao Cruzeiro”.

Entre os fatos citados pela promotoria na denúncia, estão a apropriação indébita de partes de direitos econômicos de dez jogadores, lavagem de dinheiro para dar aspecto de legalidade a essas negociações, falsidade ideológica na celebração de contratos de prestação de serviços e consultoria e apropriação indébita de valores provenientes de comissão pela negociação e renovação de contratos de jogadores, numa espécie de “rachadinha” com empresários do meio do futebol.

Dinheiro do clube para pagar advogados em ações de interesses pessoais

Além disso, sustenta a promotoria, Wagner Pires de Sá e Itair Machado usaram dinheiro do Cruzeiro para contratar advogados e defendê-los em ações de interesses pessoais. No caso do ex-presidente, saíram do caixa da Raposa R$ 150 mil para a contratação de escritório de advocacia, em inquéritos na delegacia de Fraudes e na Polícia Federal.

A situação foi apontada pelo MP como “total contrassenso”, porque o clube arcou com uma dívida para defender os interesses pessoais de Wagner, justamente na investigação que apurava a conduta supostamente lesiva dele em relação ao patrimônio estrelado.

No caso do ex-vice-presidente de futebol, o Cruzeiro efetuou o pagamento de R$ 49.360,00 a um outro escritório de advocacia, contratado por Itair para representá-lo no processo por suposta prática de crime de ameaça e contra a honra de Bruno Vicintin, seu antecessor na vice-presidência de futebol da Raposa.

Vantagens a pessoas ligadas a dirigentes e conselheiros e às organizadas 

Além dos desvios propriamente ditos, o MP identificou um mecanismo criado para dar sustentação política à diretoria. Sob o ponto de vista administrativo, a promotoria argumenta que eram promovidas ações necessárias para movimentar e manter o “esquema criminoso”.

Para isso, eram mantidos contratos em nome do clube com pessoas e empresas ligadas a dirigentes e conselheiros, em desacordo com o estatuto, como forma de obter apoio à gestão ou, pelo menos, dificultar a atuação de mecanismos de controle.

Fora da sede administrativa da Raposa, também teria sido construída uma base favorável, vinda das arquibancadas. “Eram concedidas benesses a terceiros, especialmente ligados a torcidas organizadas do Cruzeiro, para angariar apoio à gestão”, acusa a promotoria, sem, contudo, citar quais seriam as facções. De acordo com o órgão, essa ligação segue sendo apurada e é objeto de investigação policial.

Cruzeiro move outras dez ações na vara cível contra ex-dirigentes

Além da ação proposta pelo MPMG, o Cruzeiro também processa o ex-presidente Wagner Pires na Vara Cível. São pelo menos dez ações contra o ex-dirigente, nas quais há a cobrança de indenização por prejuízo e dano moral, além de nulidade de contratos.

Em algumas das demandas, também fazem parte do polo passivo Itair Machado e sua antiga empresa Futgestão Assessoria, aberta em 23 de janeiro de 2018, pouco mais de um mês após se tornar vice-presidente de futebol, e encerrada em 23 de setembro de 2020), e Flávio Pena, ex-diretor financeiro estrelado.

Em uma das demandas, o Cruzeiro conseguiu manter a liminar que determinou o bloqueio de R$ 288 mil das contas de Wagner e de Flávio, ao alegar nos autos que, além de contratar o ex-diretor financeiro mediante "vultuoso salário", ainda celebrou contrato com a F. Consulting, empresa em nome dele, para realizar os mesmos serviços que seriam de responsabilidade de Flávio. O contrato de serviço entre as partes foi assinado por Wagner, tendo Itair Machado como testemunha. 

Ressarcimento requerido pelo Ministério Público de MG

Além dos eventuais crimes apontados pelo MPMG na denúncia recebida pelo Tribunal de Justiça de MG, a promotoria requer que seja fixado valor mínimo para reparação dos danos causados ao Cruzeiro da seguinte forma:

- Integrar organização criminosa

Dano moral coletivo correspondente a 100% do prejuízo efetivamente causado pelas práticas delitivas denunciadas

* R$ 6.539.360,00 – Wagner Pires de Sá, Itair Machado, Sérgio Nonato, Cristiano Richard, Carlinhos Sabiá e Wagner Antônio Cruz

- Apropriação indébita de partes de direitos econômicos de atletas

* R$ 4 milhões - Wagner Pires de Sá, Itair Machado, Sérgio Nonato e Cristiano Richard dos Santos

- Falsidade ideológica na celebração de contratos de prestação de serviços/consultorias com empresa EW10 Sports

* R$ 800 mil: Wagner Pires de Sá, Itair Machado, Carlinhos Sabiá e Christiano Polastri Araújo

- Apropriação indébita de valores provenientes de comissão pela negociação de Bruno Silva

*R$ 250 mil – Wagner Pires de Sá, Itair Machado e Carlinhos Sabiá

- Apropriação indébita de valores provenientes de comissão pela negociação de Mayke

* R$ 800 mil - Wagner Pires de Sá, Itair Machado, Carlinhos Sabiá e Christiano Polastri Araújo

- Apropriação de valores provenientes de comissão pela renovação do contrato de Fábio

* R$ 750 mil – Wagner Pires de Sá, Itair Machado, Wagner Antônio Cruz e Fabrício Visacro

- Apropriação de valores provenientes de pagamento de defesa de advogado para defesa pessoal de Itair Machado

*R$ 49.360,00 – Wagner Pires de Sá e Itair Machado

- Apropriação de valores provenientes de pagamento de defesa de advogado para defesa pessoal de Wagner Pires de Sá

*R$ 150 mil - Wagner Pires de Sá

- Apropriação de valores com pagamentos retroativos a Itair Machado, por suposta prestação de serviços

* R$ 540 mil - Wagner Pires de Sá e Itair Machado


 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!