Responsável pelo bombeamento do fluxo sanguíneo que mantém em funcionamento outros órgãos vitais, o coração desempenha atividade semelhante à de um relógio. Por isso, se o “tic-tac” atrasar ou adiantar, esse descompasso pode causar severos danos às pessoas, inclusive a morte. O problema é definido como arritmia cardíaca, patologia que acometeu o zagueiro Juan Izquierdo, do Nacional do Uruguai, e resultou em seu óbito na noite de terça-feira (27), em São Paulo.
Cinco dias antes, o defensor enfrentava o Tricolor paulista quando, aos 39 minutos do segundo tempo, caiu desacordado no gramado do Morumbis. Ele foi reanimado, ficou internado desde então, mas não respondeu aos tratamentos. O hospital Albert Einstein informou o falecimento às 21h38, “em decorrência de morte encefálica, após parada cardiorrespiratória associada à arritmia cardíaca”.
Vinte anos antes, o estádio já havia sido palco da tragédia que vitimou o defensor Serginho, do São Caetano, em enredo semelhante. Então com 30 anos, ele desabou em campo e sofreu parada cardiorrespiratória. Pouco mais de uma hora depois, faleceu no hospital.
Além de Izquierdo e Serginho, outros jogadores morreram em campo, no Brasil e no exterior, fato que sempre traz à tona uma discussão: como um atleta de alto rendimento pode ser vitimado por um mal súbito, por se tratar, em tese, de uma pessoa saudável e apta a altas cargas de esforços físicos, que passa por rigorosos exames?
“Os atletas de alto rendimento, a exemplo da população em geral, também estão submetidos a fatores de risco para alguma alteração cardiológica. Eles não são imunes. No entanto, no caso de atleta com histórico genético, por exemplo, ao se exercitar em altos níveis de intensidade, ele pode, sim, vir a ter risco maior de desenvolver algum tipo de problema”, explica Marconi Gomes, cardiologista, médico do esporte e membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
Haroldo Christo Aleixo, cardiologista e médico do esporte no Atlético, acrescenta: “As cardiopatias podem ser encontradas tanto em atletas quanto em não atletas. O que o exercício de alta intensidade pode fazer é atuar como gatilho, precipitando a morte súbita durante a atividade física, naqueles indivíduos que, obviamente, têm a doença que estava oculta, silenciosa”.
Acompanhamento
Ainda não se pode afirmar se este era o caso de Izquierdo que, em 2014, aos 17 anos, sofreu uma arritmia. Independentemente disso, a forma de mitigar eventos letais em atletas é a investigação aprofundada e a monitorização constante.
“Antes de cada temporada, o atleta passa por uma investigação completa de saúde. Isso permite identificar alguma cardiopatia silenciosa, oculta, antes que ela se manifeste, muitas vezes de forma tão dramática como uma morte súbita”, alerta o médico do Galo, referindo-se a exames físicos e laboratoriais, eletrocardiograma, ecocardiograma, testes de esforço, entre outros.
Marconi destaca ainda que, mesmo depois da avaliação de pré-temporada, a monitorização deve ser contínua para identificar eventuais cardiopatias no decorrer das competições. “Isso permite fazer a estratificação dessas arritmias e avaliar o perigo de causar um evento cardiológico mais grave”, ressalta o especialista.
As arritmias cardíacas são alterações na condução do estímulo elétrico do coração. Quando isso ocorre, os batimentos podem ser mais lentos ou mais acelerados. O ritmo considerado “normal” varia de 60 a 100 batidas por minuto. Quando está acima (taquicardia) ou abaixo (bradicardia) desses níveis, ocorre o problema.
“Algumas têm tratamento, como a fibrilação atrial, que é mais comum em atletas de alto rendimento. Pode ser tratada com ablação cardíaca, espécie de cauterização da via arrítmica dentro do coração, ou seja, como se queimasse a via que está causando a arritmia”, esclarece Marconi Gomes.
Muito se questiona se a sobrecarga física potencializa o risco de arritmias que resultariam em morte súbita. “Normalmente, não. Exceto em situações muito específicas de cardiopatias não diagnosticadas”, responde Marconi Gomes. “Não é a causa, mas pode ser um facilitador”, completa.
Controle periódico pode evitar 'surpresas'
Jogadores de futebol vivem rotina exaustiva de treinamentos, viagens e jogos. Como eles trabalham em grandes volumes e intensidade, algumas alterações cardíacas podem acontecer, para que o coração se torne adaptado ao esforço que realizam. São chamadas de “alterações adaptativas”, necessárias para manter a performance cardíaca adequada em condições de sobrecarga circulatória aumentada. Contudo, nem todos os atletas sofrem esse ajuste.
“Essas adaptações são maiores e mais intensas quanto maior for o volume de treinamento. Por isso, precisamos monitorar esses atletas periodicamente para ver se eles estão progredindo de forma favorável ou não”, observa Haroldo Christo Aleixo, cardiologista e médico do esporte no Atlético.
Aleixo aponta, ainda, que o controle também é feito pelas entidades. “A CBF e as federações exigem atestado médico liberando o atleta para a prática de atividade física. É uma atuação preventiva para identificação precoce de cardiopatias”, reconhece.
Embora o controle da saúde dos atletas de alto rendimento seja rígido, há outro fator que pode comprometer a detecção de eventuais fatores de risco: o desejo de seguir em plena atividade.
“O atleta é mestre em não relatar que está sentindo algum sintoma porque ele quer sempre superar seus limites. Ao negligenciar essa informação, ele pode vir a ter algum tipo de manifestação de doença cardíaca”, adverte o cardiologista e médico do esporte Marconi Gomes.
Ex-cruzeirense morreu aos 24 anos em Portugal
Em janeiro de 2021, o meio-campo Alex, revelado pelo Cruzeiro, perdeu a vida após passar mal em campo. Ele tinha 24 anos e sofreu parada cardiorrespiratória no jogo entre seu time, o Alverca, e o União FC de Almeirim, pela terceira divisão portuguesa. Ele ficou quatro dias internado, mas não resistiu.
Na Copa das Confederações de 2003, o camaronês Marc-Vivien Foé , de 28 anos, desmaiou no jogo contra a Colômbia e morreu. No ano seguinte, o húngaro Miklos Fehér, de 24, faleceu em jogo do Vitória de Guimarães contra o Benfica.