No último janeiro, enquanto algumas crianças e adolescentes curtiam férias em passeios e viagens com familiares, um menino de apenas 15 anos despertou a atenção do Brasil, ao levar a sério o que pode ser considerado brincadeira. Com rosto infantil e futebol de gente grande, o atacante Endrick, do Palmeiras, foi a sensação da Copa São Paulo de júnior.

Encarando e dando trabalho a defensores até seis anos mais velhos do que ele, o camisa 9 do Verdão foi eleito o craque do torneio e ajudou seu time a conquistar o título inédito. Marcou seis gols, um deles considerado o mais bonito da competição, numa bicicleta contra o Oeste, pelas quartas de final.

Há duas semanas, inclusive, a revista inglesa "Fourfourtwo" incluiu Endrick na lista das 50 principais promessas do futebol mundial, em décimo lugar. Gabriel Veron, seu companheiro de clube, é o outro brasileiro, na 17ª colocação.

Endrick se tornará o fora de série que aparenta? Impossível cravar. No entanto, é inegável que o garoto é mais uma tacada muito bem-sucedida do Palmeiras. De clube sem tradição em revelar jovens talentos, a equipe paulista assumiu outro status nos últimos anos e passou a ser comparada a tradicionais fábricas de talentos como Santos, Fluminense, Flamengo, São Paulo, Grêmio...Clubes que formam, lançam e bancam.

Em Minas Gerais, apesar da ótima estrutura oferecida, do investimento feito e dos profissionais qualificados trabalhando em América, Atlético e Cruzeiro, tem-se a ideia de que os meninos forjados nas divisões inferiores nos últimos tempos não contam com o mesmo respaldo. Alguns, são vendidos antes mesmo de entrar em campo pelos times profissionais. Outros, embora alçados à equipe principal, batem e voltam. Não raro, “somem”. Adaptando a situação ao ditado popular, a impressão é a de que “a grama do vizinho é sempre mais verde”.

“O Atlético e o Cruzeiro também são formadores e dão oportunidades no profissional. Eu não gosto muito de citar, porque acabamos esquecendo alguém, por serem muitos. Mas, dos anos 1990 para cá, por exemplo, vários passaram pelas minhas mãos como Mancini, Rafael Moura, Ricardinho, Belletti e o próprio Ronaldo Fenômeno”, rebate Eugênio Salomão, 62 anos, há cerca de quatro décadas trabalhando na formação de jogadores.


 

Conhecido no meio da bola como Baiano, ele passou, entre outros, pela seleção brasileira de base, Cruzeiro e Atlético, onde segue como observador técnico. Talvez seja um dos profissionais mais longevos do Estado atuando na busca por novos joias. Por isso, assegura que os mineiros são celeiros e revelam atletas.

“O Galo, por exemplo, é uma fábrica de jogadores, tem uma categoria de base espetacular, um CT que é referência. Agora, depende do momento pelo qual o profissional está passando. O Atlético, atualmente, tem um investimento muito alto, algo que dificulta o lançamento dessas nossas promessas. Temos grandes jogadores na base atleticana, mas, para jogar na equipe principal hoje, é muito difícil”, completa Baiano.

Verdão mudou metodologia e colhe frutos

O lançamento e a manutenção das revelações podem estar relacionados a vários aspectos, como menciona Baiano. Às vezes, o time passa por uma mau momento financeiro, sem dinheiro para contratar, e só resta recorrer à base. Tomando o Palmeiras como referência, não seria esta a explicação, devido aos milionários aportes feitos pelos últimos patrocinadores alviverdes.

Em 2020, por exemplo, quando conquistou o Campeonato Paulista, a Copa do Brasil e a Libertadores, o Verdão contou com a participação direta nos jogos de nomes como Gabriel Menino, Patrick de Paula, Danilo, Gabriel Veron, Gabriel Silva, Renan, Lucas Esteves e Wesley. Todos “Crias da Academia”, como o clube se refere ao departamento de base.

“Isso foi planejado desde 2015, quando cheguei junto com o Alexandre Mattos (ex-diretor de futebol) e o Cícero (Souza, gerente de futebol). O Palmeiras vinha passando dois anos ruins. Em 2013, estava na Série B do Brasileiro e, em 2014, quase caiu. Ali, começamos um trabalho na base para tentar ser referência, coisa que o Palmeiras nunca foi. Isso tudo foi estruturado para começar a dar espaço aos meninos e aconteceu", recorda-se João Paulo Sampaio, coordenador da base palmeirense.

"Já era para termos jogadores da base em 2018 e 2019, porque o sub-20 vinha fazendo grandes campanhas, com muitas vendas e jogadores na seleção de base. Em 2020, o clube começou a abrir espaço para os meninos”, reforça o dirigente do time paulista.

Elmo Júnior, 42 anos, ex-jogador, diretor do Internacional de Minas e proprietário da Soccer Trainer BH, empresa que capta, prepara e encaminha atletas, acredita que a explicação para alguns clubes terem mais jovens se destacando no time profissional do que outros seria o próprio “histórico” deles.

“Na minha avaliação, o trabalho de captação desses clubes é mais agressivo, com uma rede de relacionamento maior, de poder buscar atletas nos confins do Brasil, onde quase ninguém vai. Isso, com certeza, atrai mais as promessas. Além disso, os 'olheiros' também entendem que é melhor colocar o garoto em clubes que dão mais oportunidades. Isso faz com que os captadores acabem mandando jogadores de mais qualidade para esses locais, que têm coragem de utilizar o jovem”, opina.

João Paulo Sampaio compartilha da “tese” de que alguns clubes se destacam na revelação de jogadores por terem tradição em oferecer mais chances.

“Acho que o Santos, por exemplo, é um caso de identidade e uma necessidade. Até porque não tem o tamanho da torcida e o poder aquisitivo tão alto alguns clubes. O Grêmio também é uma identidade, para tentar competir. O São Paulo tem essa tradição, principalmente devido a Cotia (centro de formação), um investimento de muitos anos. Palmeiras e Flamengo estão mais nessa onda de uns anos para cá”, analisa o coordenador da base do Verdão.

Ele acrescenta: “E o ganho não é só na venda de jogador, mas no gasto mensal. De 2020 para cá, o Palmeiras reduziu em R$ 5 milhões a folha de pagamento, ao dar mais espaço ao menino que, no início, tem um salário mais baixo. O garoto vindo da base custa entre 10% e 20% do que recebe um contratado”.

Conforme levantamento palmeirense, entre 2015 e 2019 o clube faturou cerca de R$ 300 milhões em vendas de atletas formados em casa. No mesmo período, investiu em torno de R$ 90 milhões. “A expectativa é ganhar muito mais com os meninos que surgiram a partir de 2020”, projeta João Paulo.

Erasmo Damiani, gerente das categorias de base do Atlético, por sua vez, contesta a “máxima” da tradição e avalia o aproveitamento dos jovens sob outra ótica.

“Vejo poucos, pouquíssimos clubes no Brasil que lançam por identidade. Agora, temos muitos que utilizam a base na hora da necessidade. Entendo que o lançar vai depender de muitos fatores, como política do clube, treinador que aceita trabalhar com garotos mais novos, momento que vem passando na competição. Todos esse fatores influenciam na situação de lançar o atleta”, analisa.

O “caso” Bernard e a promessa Savinho

Como mencionado por Erasmo Damiani, o momento do clube costuma, sim, definir o futuro dos meninos que atuam na base. Para o bem ou para o mal. Em 2010, por exemplo, Bernard, um meia franzino então com 18 anos, estava prestes a ser dispensado do Galo. No entanto, o alvinegro fez parceria com o Democrata-SL para disputar a Segunda Divisão mineira daquele ano, com o intuito de auxiliar na transição dos garotos que não seriam utilizados, inicialmente, no time profissional.

O jogador seguiu na “barca” e, de dispensado, viu a carreira se transformar. “Quem salvou o Bernard fui eu”, orgulha-se Baiano.

O projeto com o Jacaré já havia sido implementado em outros clubes como Tombense, Democrata-GV e Uberlândia, sempre tendo Baiano como treinador cedido pelo alvinegro. Em Sete Lagoas, Bernard deslanchou e regressou ao Galo com outro status.

“O Bernard estava pra ser liberado, cara. No entanto, fez um excelente campeonato e retornou do empréstimo direto para o profissional do Atlético, quando teve a oportunidade dele”, recorda-se Baiano.

A partir de 2011, o jogador passou a ter chances na equipe principal e, em 2013, chegou ao ápice, com a conquista da Copa Libertadores. Em alta com a camisa alvinegra, os ucranianos do Shakhtar Donetsk toparam pagaram 25 milhões de euros para levar o jogador. Na cotação da época, cerca de R$ 76,7 milhões, a maior venda da história atleticana.

Neste ano, outro jovem promissor pode deixar a Cidade do Galo, em mais uma transação milionária. Aos 17 anos, o atacante Savinho está sendo negociado com o Grupo City (detentor do Manchester City) por 6,5 milhões de euros, cerca de R$ 40 milhões. Além de bônus por metas atingidas, o negócio pode render aproximadamente R$ 75 milhões aos cofres do time mineiro.

Savinho teve a primeira oportunidade no Atlético em setembro de 2020, ao entrar no segundo tempo na vitória sobre o Atlético-GO, por 4 a 3, pelo Campeonato Brasileiro. De lá para cá, não se firmou entre os titulares, mas atuou 23 vezes e já está de malas prontas rumo à Europa.

“Com o elenco que o Atlético tem hoje, é muito difícil o menino se firmar no profissional. Os garotos podem ter chance no Campeonato Mineiro, que funciona como um laboratório, mas quando começar o Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores, quem vai jogar são os mais experientes. Temos o Savinho, que foi muito cedo para o profissional, mas ele vai jogar no lugar do Hulk? Não vai”, argumenta Baiano.

“Quando está tudo legal, bem engrenado igual ao Atlético, é mais difícil o lançamento da rapaziada. Às vezes, podemos perder grandes valores porque não temos espaço para que todos possam desenvolver seu trabalho no time principal. Mas, reitero: o Galo é formador, sim”, acrescenta.

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