Rei do futebol

Pelé enfrentou racismo em meio a mito da democracia racial brasileira

Mesmo com algumas falas controversas, Pelé se envolveu no combate ao racismo e em campanhas de incentivo por uma maior participação de negros na política

Por Agências
Publicado em 31 de dezembro de 2022 | 11:40
 
 
 
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Em 14 de novembro de 1995, quando Pelé já havia deixado de lado o título de jogador em atividade e passou a carregar o cargo de ministro extraordinário dos Esportes do governo de Fernando Henrique Cardoso, ele mostrou uma face pouco difundida. O Rei recebeu membros do movimento Marcha Contra o Racismo para discutir os atos em memória dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.

Pelé, um homem negro da equipe ministerial, poderia ser uma ponte entre os ativistas e o presidente. Mas o ídolo foi além. Mais do que discutir a marcha, defendeu o voto em negros.

"Se o negro quer que se tenha uma melhora na sua posição social e uma melhora no Brasil de uma maneira geral, temos de botar a gente no Congresso para defender a nossa raça", disse o então chefe do Esporte.
Disse ainda que o sinônimo do político no Brasil, na época, era corrupção -"mas que o negro não carregava essa marca".

Edson Arantes do Nascimento, Pelé, morreu nesta quinta-feira (29), aos 82 anos, sob questionamentos do seu letramento racial e político. Entretanto, o ídolo se posicionou contra o racismo durante carreira, principalmente em momentos em que ganhava potência o mito da democracia racial brasileira.

Mesmo com falas controvérsias, ele é visto por especialistas como um homem negro em que a atuação profissional carregava representatividade social e política para seu grupo.

Quando se posicionava, porém, ganhava desafetos. Sua fala em favor do voto em negros e sobre a corrupção no meio político causou desconforto entre membros do Congresso. "Não acredito que ele tenha dito isso, mas, se disse, vou fazer uma guerra", pontuou o então presidente da Câmara, Luis Eduardo Magalhães (PFL-BA), na sequência - em nota, na época, Pelé depois relativizou sua fala sobre corrupção.

Por outro lado, o discurso sobre voto foi acolhido por representantes do movimento negro. "É muito importante uma representação institucional dos negros para mudar a situação", disse o jornalista e doutor em educação Edson Lopes Cardoso, secretário-geral do movimento.

Outro objetivo do encontro era conseguir visibilidade e espaço na mídia. Em entrevista à reportagem, Cardoso lembra que eles foram surpreendidos pela recepção de Pelé, que não só ouviu atentamente aos membros da Marcha como estimulou a presença do negro da política.

Para Cardoso, que é militante do movimento negro e autor do livro "Nada os Trará de Volta", é ingenuidade acreditar que um homem negro retinto nascido na década de 1940 não tivesse consciência racial. Para ele, a mera presença do jogador na seleção e a excelência com que atuava já foram, em si, atos políticos grandes o suficiente para mudar o imaginário coletivo sobre o que é ser negro.

Posicionamentos políticos

Os posicionamentos políticos do jogador foram além da questão racial. Em 1969, ao fazer seu milésimo gol, Pelé pediu que "nunca se esqueçam das crianças pobres, dos necessitados e das casas de caridade".

Em 1984, Pelé também apoiou o movimento Diretas Já, em protesto pela retomada das eleições diretas para presidente. Em 1994, quando disse que poderia se candidatar à presidência, se declarou socialista.

Por outro lado, o ídolo foi criticado quando afirmou que o jogador Aranha, do Santos, se precipitou ao contestar torcedores do Grêmio que o xingaram de macaco durante a partida pela Copa do Brasil em 2014. Pelé disse que o racismo deve ser coibido, "mas não é em um lugar público que vai coibir".

"Aranha se precipitou um pouco em querer brigar com a torcida. Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria que parar", disse, na época, ao comentar o episódio.

Pelé atuou no período em que crescia com mais robustez o mito da democracia racial brasileira, ideologia que, ainda hoje, desacredita a desigualdade étnica no Brasil.

Para o historiador e criador do podcast História Preta, Thiago André, o ídolo nunca deixou de se posicionar contra esta teoria. Em 1988, o jogador participou da campanha pelo centenário da abolição da escravidão. Nos comerciais veiculados pelo governo, ele destacava o papel da população negra na construção do país, não apenas de maneira braçal, mas também na cultura e no esporte.

"Isso parece ser muito corriqueiro no dia de hoje, mas naquele momento da história era absolutamente surreal que o maior ídolo mundial e o maior brasileiro de todos os tempos estivesse entrando diariamente na televisão e dando essa mensagem", diz.

Além disso, o historiador pontua que a ideia da falta de letramento político de Pelé surgiu após o jogador não se posicionar de maneira contundente contra a ditadura militar imposta entre os anos de 1964 e 1985.

Protesto e repressão

André pontua, entretanto, que a seleção sofria grande pressão do governo na época para que a excelência do Brasil no futebol funcionasse como um símbolo de unidade nacional.

A saída de Pelé do time no auge da ditadura também é vista como um protesto do jogador contra o regime, que foi enfrentado com represálias e perseguição do governo e da extinta CBD (Confederação Brasileira de Desportos).

Para ele, a propagação da ideia de que Pelé era omisso racial e politicamente serve apenas para a manutenção do racismo. "Esse estigma permanece porque é um estigma de raça. O estigma de raça mais resistente no Brasil é a de que o preto não presta e não tem inteligência emocional. É esse estigma que o Pelé enfrentou."

Pelé começou a jogar profissionalmente aos 17 anos e, aos 22, já tinha 500 gols. Aos 29 fez o milésimo. Participou de um Mundial pela primeira vez em 1958, e pela última em 1970.

"A figura que fica para mim é a de excelência. Pelé foi um Rei apesar do Brasil", finaliza o historiador (Luiz Fernando de Souza - Folhapress)

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