Em 2008, em um enfrentamento entre organizadas de Atlético e Cruzeiro, o então estudante cruzeirense Marcelo Charles Gomes* foi espancado por dezenas de torcedores atleticanos a ponto de ter afundamento craniano, dentes quebrados e duas cirurgias por conta da violência sofrida.
Marcelo recorda que o trauma ficou, apesar de não ter feito com que se afastasse dos estádios para acompanhar seu clube de coração.
"Eu tive receio durante algum tempo, porque na época eu era uma pessoa conhecida. Muita gente me conhecia. Então, fiquei meio que com medo de sair nas ruas por um tempo. Eu voltei aos estádios depois, apesar de algumas críticas", disse.
Alguns agressores de Marcelo foram identificados por câmeras da PM no centro de Belo Horizonte, local da briga. Mas nenhum deles sofreu punições.
"Esse processo foi para o Tribunal de Juri, como crime contra a vida. Chegaram a colocar que eu tinha sido acusado de participar da rixa, fui colocado como responsável por algo, sendo vítima. Mas depois fui qualificado como vítima. Depois, o processo foi colocado como lesão corporal e não como tentativa contra a vida. O processo foi moroso, não quis ter contato por causa desse impacto negativo na minha vida. E no final ninguém foi responsabilizado", relembrou.
O caso de Marcelo é só mais um entre os vários que acontecem e que permeiam o futebol mineiro há décadas. A diferença é que Marcelo conseguiu sobreviver para sentir na pele e vivenciar a impunidade para crimes cometidos por torcedores.
E é essa impunidade que precisa ser combatida para que fatos como o de Marcelo e o do motoboy Lucas Elias Vieira não se repitam. Lucas foi a morte mais recente causada pelo confronto entre as organizadas de Galo e Raposa.
O falecimento do motoboy de 27 anos, no último sábado (2), foi o 13º óbito por enfrentamento direto entre as duas principais organizadas de Atlético e Cruzeiro neste século (veja a relação abaixo ao final do texto).
O episódio trouxe, mais uma vez, vozes relevantes para um problema que vem acontecendo sistematicamente em várias partes da capital nos dias de jogos dos dois times.
As brigas que originam as mortes de torcedores não conseguem ser evitadas, seja por conta dos comportamentos das próprias torcidas ou medidas que não se tornaram eficazes para o combate da violência.
É bem verdade que as forças de segurança buscam atingir o cenário ideal para conter os enfrentamentos, mas as brigas continuam acontecendo em locais até mesmo distantes dos estádios.
"A Polícia Militar tem sido exemplar. Tudo o que ela pode fazer já tem sido feito. Tanto que os casos de brigas diminuíram se comparados com a década de 90, início do século, por exemplo. A limitação está restrita dentro dos estádios e nos arredores. E os casos acontecem longe dos estádios. A tendência é de haver confrontos entre as filiais dessas torcidas", explica o especialista em segurança pública e sociólogo Luis Flávio Sapori.
Para ele, é necessário medidas mais radicais em relação às organizadas em Minas Gerais.
"Incriminar legalmente os dirigentes. Essas torcidas possuem técnicas de treinamento para confronto, acumulam ferramentas, instrumentos, armas para enfrentamentos. Então, os dirigentes devem ser criminalmente responsáveis. O ideal seria acabar com essas torcidas. Acho que há a necessidade de se discutir a extinção dessas organizações. Não sei se há legalidade no momento, mas é necessário que o Ministério Público já comece a discutir essa pauta", completa Sapori.
Medidas
Além de o Ministério Público de Minas Gerais ter orientado o banimento das torcidas Galoucura e Máfia Azul por dois anos, após a última morte de torcedor, no último final de semana, a classe política entrou em cena.
As medidas tomadas pela Inglaterra (Relatório Taylor) na década de 90 para combater a violência dos hooligans (grupo que usa violência para legitimar sua identidade) serviu como inspiração para sugestões de medidas de enfrentamento às organizadas em Minas Gerais. Mas o plano continua distante do que se pratica no Brasil.
Entre outras medidas, a Inglaterra estabeleceu punições severas, endurecimento de leis, melhoria das chamadas “condições do espetáculo”, como a organização interna dos estádios e o ir e vir para os locais dos jogos, treinamento especializado das polícias, proibição dos clubes ingleses participarem de competições internacionais por 5 anos, e planejamento em bases científicas de medidas integradas de prevenção e controle.
No Brasil, há medidas que se inspiraram no Relatório Taylor, da Inglaterra, mas ainda falta a implementação de outras, como, por exemplo, a obrigatoriedade do reconhecimento facial e monitoramento ostensivo nos estádios.
Nessa semana, o deputado estadual professor Cleiton (PV) protocolou projeto de lei que pode afastar torcedores por até 20 anos dos estádios de Minas Gerais.
De acordo com o PL 2093/2024, o indivíduo que, “comprovadamente se envolver em confusão que resulte em homicídio ou lesão corporal grave, ainda que culposo ou preterdoloso”, seja banido por pelo menos 20 anos, ficando proibido de frequentar qualquer evento esportivo ou as intermediações dos estádios. O cumprimento do dispositivo seria de responsabilidade do organizador do evento.
"O reconhecimento facial já vem sendo implementado. O Vasco, em seu estádio, já tem reconhecimento. E o estádio do Vasco é muito mais acanhado que os estádios de Belo Horizonte, com todo respeito. Se queremos torcedor com segurança e espetáculos de primeiro mundo, temos que oferecer segurança e comodidade de primeiro mundo. Estamos exigindo isso apenas para eventos com mais de 25 mil presentes. Ou seja, Mineirão e Arena MRV devem ser os únicos do estado com essa exigência. Um deles pertence ao estado de Minas e outro é um moderno estádio", declarou o parlamentar.
A proposta faz com que os clubes e a Federação Mineira de Futebol mantenham um cadastro atualizado contendo a identificação de pessoas envolvidas em confrontos nos estádios e em suas imediações. A lei permitiria que as entidades firmassem convênios com órgãos públicos de acesso a informações.
De acordo com o parlamentar, a medida também inclui os torcedores que se enfrentam longe das imediações dos estádios, o que, de fato, é a grande preocupação nas entidades no momento.
"Previmos multas para os organizadores em caso de descumprimento. Os valores deverão ser arbitrados pelo Governo do Estado. Se a multa for pesada, esperamos que os organizadores tenham mais cuidado, pensando no bolso, na hora de adotar procedimento que impeça a entrada de marginais travestidos de torcedores. Lembrando que o projeto também abarca quem briga fora do estádio em razão de futebol. Nesse caso, o organizador não se responsabiliza, mas é responsável por não deixar mais entrar em estádio", explicou professor Cleiton.
Prisão
Em continuidade à seara da política, há no senado federal o projeto de lei de autoria do ministro Alexandre Silveira e do deputado estadual João Vitor Xavier (Cidadania) que garante o endurecimento da punição para esses criminosos, que passarão a responder ao crime de rixa com previsão de pena de até 8 anos de prisão.
O texto sugere ainda que a pena seja aumentada em até dois terços se os crimes forem cometidos contra agentes de segurança. A proposta também prevê medidas cautelares contra os criminosos. O projeto dá ao Judiciário a possibilidade de proibir esses torcedores de irem ao estádio e frequentar eventos esportivos, e pode obrigá-los a se apresentar em hospitais, presídios ou outros espaços para trabalhos sociais. A Justiça poderá ainda, por exemplo, determinar que o torcedor fique detido durante o jogo.
Mortes por enfrentamento de torcidas de Atlético e Cruzeiro no século:
- Francisco Agnaldo Felício, torcedor do Cruzeiro - 11 de abril de 2004 - Região de Venda Nova
- Gustavo Telles Gonçalves, torcedor do Atlético - 10 de julho de 2004 - Avenida Olegário Maciel
- Washington Sebastião Teixeira, torcedor do Atlético - 05 de agosto 2005 - Bairro Horto
- Pedro Ferreira, torcedor do Atlético - 6 de maio de 2007 - Entrada do Mineirão
- Duas pessoas, em tiroteio em ônibus - 16 de setembro de 2007 - Bairro Santo André, região Noroeste
- Samuel de Souza Tobias, torcedor do Atlético - 27 de janeiro de 2008 - Centro da capital
- Lucas Batista Marcelino, torcedor do Atlético - 15 de fevereiro de 2009 - Bairro Horto
- Otávio Fernandes, torcedor do Cruzeiro - 27 de novembro de 2010 - Savassi
- Francis Albert, torcedor do Cruzeiro - 7 de setembro de 2020 - Sabará
- Matheus Freitas, torcedor do Atlético - 29 de novembro de 2021 - Barreiro
- Rodrigo Marlon Caetano Andrade, torcedor do Cruzeiro - 6 de março de 2022 - Bairro Boa Vista
- Lucas Elias Vieira, torcedor do Cruzeiro - 2 de março de 2024 - Barreiro
* nome preservado a pedido da vítima