Debate

Uso da inteligência artificial esbarra em emoções, limites éticos e memórias

Utilização do recurso em comercial da Volkswagen, que une Elis Regina e Maria Rita, acende debates sobre as duas faces da tecnologia


Publicado em 12 de julho de 2023 | 06:33
 
 
 
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Na semana passada, foi ao ar na TV uma propaganda da Volkswagen em celebração dos 70 anos da montadora, que, por meio de recursos de Inteligência Artificial (IA), uniu Maria Rita e sua mãe, Elis Regina. Nas imagens, vemos ambas dirigindo duas Kombis diferentes, cada uma associada a uma época, estabelecendo uma ideia de diálogo entre passado e futuro. As cantoras interagem com olhares e sorrisos e interpretam “Como Nossos Pais”, de Belchior, pérola do compositor cearense e clássico absoluto na voz de Elis, morta em janeiro de 1982, quando Maria Rita tinha apenas 4 anos.

O filme publicitário da VW, assinado pela agência AlmapBBDO, gerou imensa repercussão nas redes sociais. A polêmica em torno da peça foi igualmente barulhenta, e as reações, bem próprias dos tribunais da internet, mostraram-se ambíguas. Os comentários foram 8 ou 80, de “ideia genial” e “muito emocionante” a “coisa bizarra” e “publicidade desrespeitosa, pobre e triste”.

O comercial da Volks acabou por acender um debate necessário – e que viria à tona cedo ou tarde – sobre os limites do uso desse tipo de recurso tecnológico com a finalidade de representar situações e fatos que, na realidade, jamais aconteceram. Primogênito de Elis Regina e um dos responsáveis pela gestão da memória da artista, ao lado dos irmãos Pedro Camargo Mariano e Maria Rita, o produtor musical João Marcello Bôscoli considera natural a repercussão e o questionamento se é ético ou não o uso de ferramenta tecnológica e Inteligência Artificial (IA) para trazer pessoa falecida de volta à vida.

“Temos o direito de fazer o que fizemos, mas é sempre positivo ouvir argumentações contrárias para aprendermos um pouco”, pontua Bôscoli, sobre o questionamento se os herdeiros têm o direito de liberar alguma coisa dessa natureza.

O filho de Elis conta que o critério para a aprovação de uma peça publicitária que envolva o nome de Elis Regina é sempre no sentido de pensar se o material vai ser bom para a artista. Nos últimos 10, 11 anos, João Marcello Bôscoli, Maria Rita e Pedro Camargo Mariano receberam cerca de 60 pedidos de marcas cujo desejo era atrelar suas imagens à de Elis. Nesse período, além da Volkswagen, Nivea e Bradesco Saúde lançaram seus comerciais com a Pimentinha – só que em ambos os casos a artista “aparecia” somente em voz, cantando “Fascinação”.

O resultado das três propagandas e especificamente da mais recente, amada e odiada por tantos, “foi incrível para a popularidade da Elis”, apresentada às novas gerações em cadeia nacional. Em menos de 24 horas, o nome da cantora teve uma exposição tal que, organicamente, seria necessário um mês para igualar os níveis de busca nas plataformas de música. No fim das contas, o produtor musical considera positivo o fato de a propaganda ter levantado tantas questões, dos limites éticos do uso da inteligência artificial à relação de marcas com ditaduras.

Para Bôscoli, é salutar lembrar o que grandes corporações viveram e apoiaram, mas é preciso seguir em frente: “Do contrário, o que vamos fazer com as marcas japonesas que temos? Jogar tudo fora? Elas estavam na Segunda Guerra Mundial alinhadas com a Alemanha. O que a gente faz com as empresas norte-americanas? E as big techs, que interferem em tudo e todos na privacidade e nas eleições? O importante é seguirmos em frente. O debate e a emoção vieram de uma maneira que só Elis poderia causar”.

Pelo mesmo caminho vai a psicanalista e doutoranda em estudos psicanalíticos pela UFMG Cinthia Demaria. Ela diz que falar sobre o que é ou não saudável no uso da IA é fundamental, até porque chegaremos a questões éticas e morais. Num oceano de fake news, a tecnologia – com as deepfakes, por exemplo – é, muitas vezes, usada para o mal e para causar conflitos e confusão em questões eleitorais e diplomáticas e assuntos banais e corriqueiros. “É preciso cautela, os efeitos são muito particulares, mas é um negócio que não tem volta, está no contexto social, não adianta bater o pé, gostar ou não. A tecnologia está aí, e é preciso pensar em limites, como vamos usar. É importante vermos que há consequências se as pessoas usam de forma desenfreada”, pondera Cinthia. 

Questão existencial

A inteligência artificial é mais um recurso usado para, digamos, preencher certos buraquinhos existenciais que habitam em todos nós, seres humanos. Alguns recorrem às drogas, ao futebol, à comida, ao consumismo exagerado ou qualquer outro recurso que alivie uma sensação de falta e carência. Cinthia Demaria avalia que criar, por meio da IA, situações com pessoas que já faleceram vai ao encontro do discurso capitalista de que nada pode faltar. Se ontem foi Elis Regina, na semana que vem uma família pode ter a ideia de reproduzir um vídeo, criado por IA, do pai que já morreu em uma mensagem de parabéns ao filho adolescente. 

“Há uma demanda e uma indústria por trás disso, de preencher a falta com uma promessa de que tudo é infinito. Nessa lógica, tudo pode ser preenchido, mas não passa de uma ilusão. Quanto mais a gente tenta presentificar o que nos falta, mais no caminho da morte a gente está. De imortal, só a morte”, relata a psicanalista.

Ana Bárbara Gomes é coordenadora de políticas públicas e pesquisadora do Instituto de Referência Internet e Sociedade (Iris), grupo independente e sem fins lucrativos que tem por objetivo qualificar e democratizar o debate público sobre internet, sociedade e novas tecnologias. Ela foi da emoção ao estranhamento ao ver o comercial da Volkswagen pela primeira vez. 

Depois, de forma mais abrangente, pensou nas implicações éticas, nos diálogos sobre desinformação, nos riscos inerentes ao uso da tecnologia, no perigo da tentativa de imitar o comportamento humano e no amadurecimento de uma regulação sobre o que pode ou não ser feito quando se tem a inteligência artificial como aliada em grandes escalas. 

“É importante pensar como essas tecnologias estão sendo utilizadas para evitar que causem danos coletivos, o quanto vídeos que circulam nas redes podem trazer impactos ruins. Temos uma oportunidade de discutir com atenção sobre controvérsias jurídicas e éticas e o desafio de como letrar a população em termos digitais para que essas tecnologias sejam saudáveis”, pontua Ana Bárbara Gomes.

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