Brumadinho

Quer conhecer um quilombo próximo a BH? Saiba como

Projeto Céu de Montanhas, criado pela Vale em parceria com a Rede Terra, propõe visitas em grupos ou individuais a quatro comunidades

Por Paulo Campos
Publicado em 12 de setembro de 2023 | 09:35
 
 
normal

Em junho, pela primeira vez na história, a população quilombola esteve presente em um censo, uma “reparação histórica”, segundo o presidente em exercício do IBGE, Cimar Azevedo. Descobrimos que o Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se autodeclaram quilombolas e que Minas tem a terceira maior população quilombola: 135.310 pessoas.


Quatro desses quilombos, localizados em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, agora fazem parte do Circuito dos Quilombos, uma das 40 vivências rurais, gastronômicas, artísticas e de bem-estar do catálogo Céu de Montanhas, projeto de turismo rural e de base comunitária lançado em julho de 2022 pela Vale, em parceria com o Instituto Rede Terra.


Historicamente, quilombos são territórios de resistência contra o regime de escravidão e que preservam as tradições da população afro-brasileira. É para eles que iam as pessoas escravizadas quando fugiam de trabalhos forçados. A palavra “quilombo” origina-se da África, do idioma banto, e significa “povoação”, como ensinam os livros de história.


A primeira incursão pelo circuito ocorreu em um sábado (2/9), começou às 9h e se estendeu até as 17h, passando por quatro quilombos – Sapé, Rodrigues, Ribeirão e Marinhos. A visita foi inteiramente focada no turismo de experiência, com vivências da realidade da comunidade, com suas tradições, comida, histórias, religiosidade e música.


“A proposta é que o circuito seja semestral ou anual”, informa Daniele Teixeira, coordenadora do projeto Céu de Montanhas. “Da experiência do circuito, com a exceção do Quilombo do Ribeirão, as atrações musicais não acontecem nas outras vivências”, explica. O visitante, no entanto, pode agendar individualmente a visita a cada quilombo no receptivo HT Happy Travel no site Céu de Montanhas. "Roteirizamos até dois quilombos dia, onde os visitantes podem vivenciar e experimentar essa tradição com uma imersão cultural e gastronômica", afimra Cida Magalhães, diretora da HT. O custo é a partir de R$ 585.


Banquete quilombola

O chef Edson  Puiati e os  membros da comunidade quilombola de Sapé reunidos em torno de uma mesa de café da manhã com quitandas para receber os visitantes

 

Chegar ao Quilombo do Sapé, a primeira parada, é uma experiência carregada de expectativa e emoção. De longe, sente-se o cheiro gostoso de broa de fubá saindo do forno e o aroma do café fresquinho, coado na hora, adocicado com garapa. Para receber o visitante, a comunidade se reuniu em torno de farta mesa de café da manhã, um banquete quilombola. Como pano de fundo os batuques e tambores do grupo de dança Sorriso Negro.


Convidado a participar da experiência, o chef Edson Puiati se sentia como um estreante. "É minha primeira vez em uma comunidade quilombola, nem sabia que elas existiam assim isoladas tão perto, em Brumadinho. É bacana perceber toda essa rusticidade. Tudo o que produzem vem da terra, essa comida regada de história, de tradição preservada", pontua.

A matriarca Elza e os membros da comunidade à espera dos visitantes

Com as quitandeiras da comunidade, Puiati ajudou a rechear a mesa de "João Deitado" (broa de fubá assada na folha de bananeira), biscoito de polvilho, bolos à base de milho e mandioca e roscas. "Eles produzem muita quitanda doce, eu entrei com o salgado: a torta salgada, receita da minha avó, o pão de queijo, o "Papo Suado", o fubá na gordura de porco que vira uma farofa e que pode ser utilizada no café da manhã!".


Como na comunidade todos têm parentesco e se ermanam como em uma família, o café da manhã, a confraternização, é em torno de uma mesa, costume repassado de geração a geração. Como conta a anfitriã Matuzinha, 72, em relato emocionado que enche os olhos dos visitantes d'água: "este café da manhã é uma homenagem à minha irmã, Filomena".

As mulheres são a força do quilombo

Em 2015, um projeto foi criado na comunidade para reunir todos em torno de um café da manhã, cada vez na casa de uma família, por sorteio. Filomena foi a sorteada em 2016 e pediu que Matuzinha comprasse as quitandas e guardasse para a confraternização, mas faleceu antes. Construindo a vivência, Miriam e Matuzinha, que é coordenadora da igreja de São Vicente de Paula, decidiram homenagear Filomena, retomando o café da manhã no Circuito dos Quilombos.


Como há mais coisas entre o céu e as montanhas do que pode imaginar nossa vã filosofia, depois desse relato emocionado, a manhã termina com o brumadinhense Marcio Negô embalando a despedida com a música "Céu de Montanhas", feita sob encomenda, e que vem, segundo ele, mostrar de forma simples esse universo de um turismo tão diferenciado.

O cantor e compositor Márcio Nagô apresenta a canção

"Quando escrevi essa música, quis me colocar no lugar de um ancestral, de um avô, de um bisavô, trazendo a forma de falar: alumiou / e feito um chão de estrelas / luz de candeia / e lua cheia a iluminar / alumiou / rompendo a madrugada / é disparada / lua cheia alumiar". Me coloquei no ponto mais alto de Brumadinho, observando-a cidade e escrevi essa canção", disse.


Como morador de Brumadinho, ele considera que o projeto dar voz ao povo da cidade é importante: "É preciso alguém vir de fora para dizer que a gente é belo, que o que a gente faz tem um valor. O café que tomamos em Sapé acontece todos os dias, só que é preciso alguém vir para valorizar isso, para a comunidade passar ser olhada de outra forma".

O grupo Sorriso Negro é formado por mulheres

O Céu de Montanhas busca dar visibilidade a essas comunidades e criar uma fonte de renda, ampliando o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho. "Eles ficam emocionados de poder mostrar sua cultura, sua história, seus produtos, só que o sonho de receber os turistas vem agora de maneira estrutura", explica Daniele.

 

"O projeto é importantíssimo para dar voz aos nossos irmãos quilombolas. Para o turista pode não ser tão importante, é só mais um local que ele conhece, mas para o povo daquele lugar tem muito valor compartilhar um simples café feito com rapadura". (Marcio Negô, músico)


No quintal, tem tudo

O Circuito dos Quilombos revela o artesanato criativo das comunidades

 

De Sapé, emenda-se o Quilombo de Rodrigues. Recepcionado com um show do Negro por Negro, criado em 2012, o grupo oferece ao visitante muita tradição e a oportunidade de participar de oficinas de xequerê (cabaça), produzindo seu instrumento musical, e de pulseiras, colares e terços com a lágrima de Nossa Senhora, uma semente.


Formado por 42 membros, entre homens, mulheres e crianças, Dina Braga, 46, lidera o projeto cultural Negro por Negro, reconhecido pela Fundação Palmares. O grupo musical produz os próprios instrumentos de percussão (tambores, xequerês, gungas e iguaias) de forma artesanal, e cantam canções próprias ou de griôs (mais velhos tidos como guardiões da memória). Recentemente, eles fizeram um tour ao interior de Minas Gerais e por quatro cidades de Pernambuco.

As lavadeiras Adriana Braga, Lucilene dos Santos, Doraci da Silva e Tânia Braga e o garoto Vinicius Nicomedes

O grupo ainda mantém outros elementos dos antepassados, as Lavadeiras do Quilombo, mulheres que carregam suas trouxas de roupa, bacias, gamelas, latas d'água e potes, rememorando a época em que deslocavam para a beira dos rios para lavar roupa, e o Boi do Rosário, um cortejo que lembra o Bumba Meu Boi, do Maranhão, representado por uma cabeça de boi, guiado por um candeeiro e um balaieiro.


Se a música encanta e embala os visitantes, os drinks preparados pela mixologista molecular Marcela Azevedo revelam que os quilombos têm um tesouro escondido em seus quintais, como a "fedidinha", uma mexeria azeda, o capim-limão, a semente lágrima de Nossa Senhora e o funcho. Marcela transforma tudo isso em puro conhecimento e prazer.

Os drinks Oke Run (Céu de Montanhas) e El Oya (Terra de Mulher, Terra que Gera) no idioma iorubá de keto e a pulseira feita com a Lágrima de Nossa Senhora

O primeiro drink servido é a "fedidinha" com redução de rapadura, lágrima de Nossa Senhora e funcho. O segundo leva capim-limão e Cunha (ou Clitória), uma for azul que é corante natural com propriedades fitoterápicas, em versões com ou sem álcool. "Curiosamente, quando se coloca o capim-limão, o drink que é naturalmente azul fica rosa", revela a surpresa.


Marcela, chamada por uns de "bruxa", outros de "alquimista", reconhece que gosta desse universo de raízes, ancestralidade. Tanto que fala ao idioma iorubá. "Tento tirar de dentro dessas pessoas o que estava esquecido, num processo lento, porque dali sai milhões de outras histórias", frisa. E elogia a parceria da Rede Terra de valorizar o que vem da terra.

Marcela Azevedo (à dir.) repassou seus saberes a Pandora (à esq.), do Quilombo dos Rodrigues, para a criação dos drinks

"A comunidade quilombola não precisa ter vergonha de trazer o que tem do quintal para a mesa.  Capim-limão não dá dor de barriga", desmistifica a crença. Ela cita o ora-pro-nóbis, até então marginalizado nos quintais, que virou "coisa de rico". O circuito é para isso, continua ela, resgatar a sua cultura quilombola, não para virar algo comercial, mas autêntico.


No quintal do Quilombo do Ribeirão, Marcela encontrou a flor de ipê-amarelo para fazer geleia e drinks; no Quilombo de Sapé, a flor de erva-doce, amarelinha e rendada, que pode ser consumida em saladas ou colocada em bolos. Como não vai estar presente em todos os roteiros, ela treina a garota Sayonara, mais conhecida como "Pandora", no Quilombo dos Rodrigues. "Ela tem o mesmo olhar que o meu", alegra-se.


“Esse roteiro vai ajudar a trazer mais turistas e tirar a comunidade do anonimato, porque podemos mostrar para eles nossa cultura, nosso artesanato e contar como era o quilombo antes e como ele vive hoje.” (Jaime Ferreira, guia de turismo do Quilombo do Ribeirão)


Canções e feijoada

O morador e guia de turismo Jaime Ferreira e membros da comunidade tiram foto com um grupo de motoqueiros que visitava o Quilombo do Ribeirão

 

Hora do almoço. Os visitantes se deslocam para o Quilombo do Ribeirão para degustar a tradicional feijoada quilombola. O anfitrião Jaime Ferreira, 48, morador e guia de turismo em Ribeirão, já avisa: "é feijoada como era feita antigamente – pé de porco, rabo, focinho, maminha, tudo o que era jogado fora do porco, o escravizado aproveitava. E só acompanhava arroz, não tinha esse negócio de couve, farofa e vinagrete".


Com origem nos quilombos, o prato é leve e saboroso, garante a chef Tainá Moura, convidada do projeto. "Os insumos que eles têm estão todos no quintal. A laranja é substituída pela mexerica", conta. Tainá diz que foi levar à comunidade um pouco de contemporaneidade e trabalhar segurança alimentar, mas reconhece que aprendeu muito.

Feijoada quilombola teve uma mãozinha da chef Tainá Moura

A sobremesa que preparou é uma mousse de limão-capeta com crocante de rapadura e tartare de mexerica com toque de hortelã, desenvolvida em conjunto com a cozinheira Tiana, responsável pelo restaurante local, que já aprendeu a replicá-la. "Eu já enfrentei preconceito em ser jovem, negra, como a Tiana, e entendo as dificuldades que enfrentou", diz.


A comunidade quilombola de Ribeirão nasceu com o patriarca João Delfino Braga há cerca de 200 anos, relata Ferreira. A história do patriarca se perdeu um pouco, mas o quilombo está mais vivo do que nunca pela resistência negra. Delfino Braga não está aí para contar a história, mas deixou um curioso legado.

Artesanato produzido na comunidade de Ribeirão


"Naquela época era comum as pessoas ganharem o nome da fazenda ou da família dos senhores de engenho que comercializava os escravos, assim era mais fácil identificar os escravizados e de onde vinham. Quando chegavam da África e eram comprados, logo eram rebatizados", explica Ferreira, uma exceção à regra, porque carrega o nome do pai.

No povoado vivem 69 famílias, muitos trabalhando com artesanato, agricultura e pecuária; outros arranjaram emprego na cidade. Ferreira é um deles: é motorista e segurança. Além da feijoada, a comunidade preserva festas populares como a Folia de Reis, festejada todo o dia no dia 30 de julho. A resistência dos mais velhos ao turismo, comenta ele, vem sendo quebrada aos poucos.

A igreja de Nossa Senhora da Aparecida: um dos atrativos do Quilombo de Ribeirão


Em Ribeirão, Jaime Ferreira leva os visitantes às principais atrações do quilombo: a casa mais antiga, onde provavelmente João Delfino Braga teria residido, à igreja de Nossa Senhora da Aparecida, ao local onde foi rezada a primeira missa e ao ponto mais alto da região para avistarem toda a comunidade. A vivência dura cerca de quatro horas.


"A gente passa as tradições, a história do quilombo, para as novas gerações para não deixá-la morrer", resume. O próximo projeto dos quilombolas de Ribeirão é criar uma cooperativa para poder reunir pequenos produtores (mexerica e mandioca principalmente) e artesãos (cerâmica, bordado, cortinas de macramê) para exibirem sua arte e comercializarem seus produtos.


Bênçãos e bonecas

Dona Nair, benzedeira do Quilombo dos Marinhos

 

"Seja bem-vindo olelé / Seja bem-vindo olalá / Paz e amor para você / Que veio nos visitar".  A canção embala a chegada dos visitantes ao Quilombo dos Marinhos. Nair de Fátima Santana Silva, dona Nair, 62, benzedeira e uma das capitãs do Congo de São Benedito, recepciona a todos com cânticos e orações, reproduzindo gesto da antiga matriarca.


Ela fala das tradições, das dificuldades que o povo da comunidade já passou e da importância de manter os laços familiares. Parte de sua vida foi dedicada Congado de São Bendito e à Guarda Moçambique Nossa Senhora do Rosário, que reúne desde crianças de três anos a idosos com mais de 80. "Nossas tradições são passadas de pai para filho", orgulha-se.

O Boi do Rosário, guiado por um candeeiro é um balaieiro

Dona Nair agora se prepara para as próximas festas. Quatro delas – dedicadas a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário já ocorreram até o mês de agosto. No terceiro domingo de setembro e quarto domingo de outubro, respectivamente, é a vez de prestar louvor à Nossa Senhora do Rosário nos quilombos de Sapé e de Marinhos.


Como benzedeira, pede a Deus que proteja os seus com uma oração: "Pai nosso pequenino que te guia em bom caminho, sete sinos que te tocam, sete anjos que te acompanham e sete luzes que te alumeia, Nossa Senhora é sua madrinha, Nosso Senhor é seu padrinho, eu te ponho a mão na testa para nada ruim te perseguir, nem de noite nem de dia nem ao fim do meio-dia", e desenha com o dedo repetidas cruzes na testa do visitante.

As bonecas de pano criadas pelo estilista Ronaldo Fraga com a ajuda da comunidade

Na comunidade dos Marinhos, os turistas também conhecem a Maria do Quilombo, a boneca negra feita com pano, manta de silicone e linhas, com vestidos coloridos e adornadas com turbantes e bordados, além de outros produtos artesanais têxteis, como bolsas, jogos de mesa e aventais, tudo feito pelas mãos cuidadosas de 12 artesãs das comunidade.


Já benzidos e enriquecidos com essas experiências que revelam um pouco do cotidiano dos quilombos, os visitantes podem voltar para casa. "O circuito é só o começo do resgate de uma cultura que ficou esquecida", afirma Marcela Azevedo. Já para Daniele Teixeira, o circuito mostra que Brumadinho, tem vocação para o turismo sustentável, de experiência, e está sempre de portas abertas para receber os turistas.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!