Depois que surgiram a psicanálise e o estruturalismo, não podemos mais nos restringir ao consciente e aos ditames da razão na análise dos fenômenos humanos, pessoais e coletivos. Há universos pré-consciente, subconsciente e inconsciente (pessoal e coletivo), subjacentes a nossas práticas, a serem considerados.
Quero me ater apenas a duas vertentes que influenciam nossos comportamentos. São legados das duas principais culturas ancestrais que subjazem em nosso inconsciente coletivo e nos ajudam a entender fenômenos atuais, como a corrupção que atravessa o corpo social brasileiro: as culturas grega e judaico-cristã.
Da cultura grega herdamos o sentimento de vergonha. O conceito correlato é o de herói. Ter vergonha, para os gregos, consistia em se frustrar em qualquer empreendimento, como na guerra e na convivência social. Triunfar e ser bem-sucedido preenchia os requisitos do herói.
Hoje, essa categoria está presente em nossa sociedade. É um herói o jogador que conseguiu o gol da vitória do time de nossa predileção. Vergonha coletiva é o Brasil perder de 7 a 1 na Copa do Mundo. A vergonha tem a ver com a imagem que projetamos socialmente. Ela tem que causar admiração e respeito. Caso contrário, faz as pessoas se envergonharem.
A outra vertente é constituída pela tradição judaico-cristã. A categoria central é a culpa. Geralmente, colocamos a culpa nos outros. Se fracassamos num negócio, é por culpa da crise econômica. Se o matrimônio se desfez, é por culpa de um dos parceiros. A culpa atinge a interioridade e afeta a consciência. A repercussão não é tanto diante dos outros, que talvez nem saibam de nosso malfeito, mas diante do tribunal da consciência, que nos remete logo a Deus.
O oposto à culpa é o sentimento de ser justo e reto, dois conceitos definidores de uma pessoa “justa” (santa) no sentido bíblico. Sentir vergonha e dar-se conta da culpa constitui as bases de uma consciência ética. Não precisar se envergonhar diante dos outros e não se sentir culpado diante da consciência e de Deus são sinais de retidão de vida e de uma atitude ética correta.
Qual é nosso problema concernente à escandalosa corrupção ativa e passiva no Brasil? É a acabada falta de vergonha e a completa ausência de culpa dos corruptos e corruptores diante de seus malfeitos. Mesmo surpreendidos no ato de corrupção, ouvimos sempre: “Não sou culpado de nada”. E trata-se de pessoas notória e comprovadamente corruptas. Perderam a noção total de culpa e não dão nenhuma importância à vergonha pública de seus atos.
Raramente, ouve-se a indignação ética da sociedade: os corruptos nem se incomodam e continuam em seu desfrute.
Aristóteles estabelecia a vergonha e o rubor do rosto como um indicativo da presença de uma consciência ética. Sem essa vergonha, a pessoa era realmente sem-vergonha, mau-caráter, sem sentido dos valores. Essa falta de vergonha e de sentimento de culpa se transformou, entre nós, no Brasil, numa espécie de segunda natureza, tornada uma prática usual. Por isso, quase todo o tecido social é contaminado pelo vírus da corrupção. Ela chegou nos dias atuais a níveis tão escandalosos que não podem mais ser tolerados.
A corrupção como prática pessoal e social, sem sermos moralistas e utópicos, tem que ser banida e reduzida a níveis compatíveis com a condição humana decaída e corruptível. Há que se resgatar o sentimento de vergonha e de culpa, sem o que nossos esforços serão inócuos.
- Portal O Tempo
- Opinião
- Leonardo Boff
- Artigo
A falta de vergonha e a ausência de culpa na corrupção brasileira
Clique e participe do nosso canal no WhatsApp
Participe do canal de O TEMPO no WhatsApp e receba as notícias do dia direto no seu celular
O portal O Tempo, utiliza cookies para armazenar ou recolher informações no seu navegador. A informação normalmente não o identifica diretamente, mas pode dar-lhe uma experiência web mais personalizada. Uma vez que respeitamos o seu direito à privacidade, pode optar por não permitir alguns tipos de cookies. Para mais informações, revise nossa Política de Cookies.
Cookies operacionais/técnicos: São usados para tornar a navegação no site possível, são essenciais e possibilitam a oferta de funcionalidades básicas.
Eles ajudam a registrar como as pessoas usam o nosso site, para que possamos melhorá-lo no futuro. Por exemplo, eles nos dizem quais são as páginas mais populares e como as pessoas navegam pelo nosso site. Usamos cookies analíticos próprios e também do Google Analytics para coletar dados agregados sobre o uso do site.
Os cookies comportamentais e de marketing ajudam a entender seus interesses baseados em como você navega em nosso site. Esses cookies podem ser ativados tanto no nosso website quanto nas plataformas dos nossos parceiros de publicidade, como Facebook, Google e LinkedIn.
Olá leitor, o portal O Tempo utiliza cookies para otimizar e aprimorar sua navegação no site. Todos os cookies, exceto os estritamente necessários, necessitam de seu consentimento para serem executados. Para saber mais acesse a nossa Política de Privacidade.