Do alto do bairro Tupi, se enxerga o vale do córrego do Tamboril, de suas nascentes até sua foz, no Isidora. Frondosas espécies de árvores formam as matas ciliares, por onde perambulam aves de várias espécies, micos e lobos-guará. Crianças brincam e nadam nas águas límpidas do córrego.
Cenas como essa existiram há menos de 30 anos, quando os primeiros moradores chegaram ao bairro Jardim Felicidade, na região Norte de Belo Horizonte. O loteamento foi conquistado por um movimento de moradia atuante em bairros vizinhos. A Fazenda Velha, que ali existia, tinha dívidas de impostos com a prefeitura. A desapropriação se deu com recursos do governo, para auxiliar na construção das casas.
Os novos moradores eram pessoas de baixa renda, que viviam de aluguel. A infra-estrutura, como acontece nas periferias brasileiras, ficou para depois. No início, o bairro não tinha luz nem água encanada. A população utilizava as águas do córrego do Tamboril. Para o esgoto, cada casa tinha sua fossa séptica.
Moradores antigos contam que foi a chegada da Copasa que deixou o córrego poluído. A companhia fez a rede, mas não os interceptores, jogando todo o esgoto do bairro diretamente no Tamboril. A partir daí, a população foi se distanciando do córrego, que deixou de ser fonte de água pura e passou a ser vetor de doenças.
Escola e posto de saúde só chegaram quatro anos depois das primeiras casas. Muitas construções foram feitas sobre áreas de nascentes, o que, somado ao desmatamento, reduziu o volume de água nos córregos do bairro. Mesmo assim, ainda se encontra muita água brotando em quintais, calçadas, lotes vagos.
Uma dessas bicas aflora com força atrás da escola municipal. Ali havia uma caixa d’água improvisada, usada para banhos ocasionais, lavagem de carros e refresco de cavalos. Um projeto de qualificação dessa nascente, conduzido pelo sub-comitê da bacia do Ribeirão do Onça, em parceria com atores comunitários e a Escola de Arquitetura da UFMG, foi realizado recentemente.
A obra é simples, mas inundou de alegria aquática aquele canto do Felicidade. A água cai em uma fonte circular, mais alta, e dali para uma outra, mais rasa, quase uma piscininha. As crianças são frequentadoras assíduas. No primeiro fim de semana depois da reforma, uma ocupação espontânea, com carros de som e churrasco na via pública, ocorreu por ali.
Tudo isso poderia ser prosaico, não fosse o fato de que a imensa maioria das nascentes nas cidades brasileiras é jogada para debaixo da terra – como se devêssemos nos envergonhar da água que brota. Quem anda pela cidade com o ouvido atento volta e meia se depara com o som da água nascendo em uma boca de lobo.
A nascente do Jardim Felicidade deveria ser apenas mais um exemplo de uma série de espaços públicos em que a água faz parte da vida. Essa proposta só foi possível, ali, graças à luta da comunidade, que tem uma visão avançada do meio ambiente urbano.
A prefeitura tem um projeto para o córrego do Tamboril. Infelizmente, ele não foi construído junto com moradores – que ainda não conseguiram conhecer o projeto. Parece que o projeto da Sudecap cria uma grande avenida em torno do córrego, inviabilizando seu uso como espaço agregador do bairro.
Recentemente, lideranças locais expuseram esses pontos a representantes da PBH e de vereadores, a fim de criar um processo participativo de revitalização do córrego. Se a PBH souber aproveitar a oportunidade, pode fazer ali uma obra de referência, dentro da tendência mundial de requalificação de cursos d’água em áreas urbanas.
O córrego do Tamboril é bastante poluído, mas pode facilmente deixar de ser. Não há registro de enchentes graves, tampouco demanda viária relevante. Há todos os ingredientes para a criação de um modelo de parque linear urbano, com participação popular. O bairro e a cidade merecem.
Essa água que brota na Felicidade é como aquela flor que certa vez irrompeu o asfalto. Não custa lembrar as palavras do poeta: “Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. / Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto. / Façam completo silêncio, paralisem os negócios, / garanto que uma flor nasceu”.