Se tem uma palavra que define “Praia do Futuro” é “sutileza”. Nada nesse mais recente filme de Karim Aïnouz é entregue de bandeja. O convite é para que o público embarque naquela história e vá tirando dali suas próprias conclusões, sem concessões, sem muitas explicações, como se, mais do que espectadores, fôssemos voyeurs.
E Aïnouz faz isso lançando mão de todos os artifícios que o cinema permite: bela fotografia, roteiro bem alinhavado, direção primorosa e excelentes, no caso dos brasileiros, interpretações.
É, aliás, no bom entendimento entre diretor e ator/protagonista que “Praia do Futuro” se alicerça. Aïnouz não teria tanto êxito se ali não estivesse Wagner Moura, que é conduzido pelo diretor ao “lugar do silêncio”, como disse o próprio Aïnouz ao Magazine.
Um lugar em que o ator transita com a mesma tranquilidade da grandiloquência de um Capitão Nascimento. Moura é um monstro de interpretação, já se sabe, mas, como nunca deixa de surpreender, é preciso sempre reafirmar e reafirmar isso.
Assim, fica fácil perceber todas as nuances de Donato, o salva-vidas que, ao fracassar pela primeira vez em sua profissão – por não conseguir salvar um alemão de um afogamento –, encontra a saída, literalmente, para uma mudança de vida, uma vida que talvez ele não pensasse ser possível ter. Afinal, como ele mesmo diz ao alemão sobrevivente, “não é possível construir nada na praia do Futuro”. Ele se refere ao salitre que impede edificações no lugar, mas não é difícil traçar, no desenrolar da trama, um paralelo com a dificuldade da existência do bombeiro em Fortaleza.
Mas é aos poucos que Donato vai sendo desvelado. Ídolo do irmão, o garoto Airton, exerce a profissão com dedicação, tanto que não se conforma de não ter evitado o afogamento e faz questão de dar a notícia ao amigo da vítima, Konrad (interpretado pelo ator alemão Clemens Schick). É a partir daí que tudo acontece, não só na vida de Donato, mas também no filme.
Do sexo casual, passando pela paquera discreta, numa praia, à ida dos dois a uma arrebentação se constrói a relação de Donato e Konrad. É com diálogos pontuais, silêncios e intenções que a teia de “A Praia do Futuro” se forma.
E, assim, mais tarde, quando já entregue à aventura de viver em Berlim, é fascinante ver Donato ir do desconforto inicial com o clima gélido da cidade – “não consigo viver num lugar que não tenha praia”, chega a dizer – para o sorriso de satisfação pelo sol fraquinho que lhe bate na cara, quando já completamente adaptado ao que lhe pode oferecer o lugar.
Tudo pequeno, sem grandes alardes, sem muitas satisfações. Assim, Aïnouz vai construindo a trama. Chega a lugares comoventes, como as duas cenas de dança, primordiais para a trama. Na primeira, o brasileiro e o alemão bailam e cantam ao som de uma música francesa até se engalfinharem em beijos e abraços. Na outra, cheia de significado, é Donato o foco: dançando num inferninho berlinense uma música qualquer que não se pode ouvir, mostra, em seu rosto, toda a paz do seu espírito que a música audível transmite.
E se Wagner Moura leva o filme até ali, com a entrada de Jesuíta Barbosa em cena, ele tem com quem dividir a responsabilidade. Quanto amor existe por trás da cara cheia de raiva de Airton, o irmão já homem feito que foi abandonado por Donato ainda criança em Fortaleza para que ele vivesse em Berlim!
O jovem Jesuíta, que só aparece na parte final de “Praia do Futuro” brilha, mostrando ser do mesmo planeta de Wagner Moura. A cada novo papel, uma total entrega, em que fica difícil imaginar o mesmo ator por trás dos personagens.
A contracena dos dois é, assim, outro ponto alto do filme de Aïnouz, que tem, além de toda a qualidade cinematográfica, outros méritos. O principal deles é o de mostrar uma relação homossexual com a mesmíssima naturalidade que se mostra no cinema uma relação hetero. Mesmo porque, “Praia do Futuro” não trata dessa relação, mas de outra, mais complexa: a dos irmãos.
Diante disso, fico pensando nas pessoas que saíram do cinema no meio da sessão. Indignadas com as cenas de sexo entre dois homens, perderam cinema de ótima qualidade. É caso de sentir dó?
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