Em uma de suas tirinhas, Laerte afirma que “finais felizes existem aos montes, mas não estão no final, e sim no meio”. Isso me deu vontade de falar dela, nesse início de ano, talvez como forma de nos inspirar a viver de verdade, assim como ela vem de fato fazendo. De falar de como essa pessoa absolutamente consagrada em sua profissão, já com filho crescido e, imagino, com uma vida financeira estabelecida, resolveu abandonar essa aparente cama quentinha para revelar algo que não era apenas uma necessidade dela como indivíduo, mas algo que precisava ser colocado na mesa e discutido por uma sociedade inteira.
Laerte não saiu do armário, simplesmente. Ela arrombou o closet. E, ao fazer isso, fez com que a discussão sobre a questão do gênero viesse à tona. E, o melhor, como se trata de Laerte, uma cartunista genial, o nível do debate se elevou. (O que Laerte fez é tão novo que me obrigou a mudar todos os artigos e adjetivos masculinos que eu havia escrito nos parágrafos anteriores para femininos. Me lembrei de ter lido numa matéria de Liliane Pelegrini aqui mesmo neste Magazine que é assim que Laerte quer ser tratada).
E sabe o que é mais sensacional ainda nessa “tomada de posição” de Laerte? É a honestidade (no sentido mais amplo da palavra) dela em fazer essa transformação diante de todos nós. Porque, para Laerte, não importava apenas assumir algo que ela negou e reprimiu o mais que pôde, como ela já revelou em uma entrevista. Ela tratou a sua como questão política. Ela viu ali o caminho para a discussão de algo muito maior e premente, que é a transgeneridade – nas suas palavras, talvez, um tabu maior que a orientação sexual.
E sendo ela quem é, não se furtou a fazer disso sua militância, como antes, na sua juventude, fez com o comunismo.
Antes, figurinha difícil da mídia, Laerte deu as caras – com batom, rímel e sombra – na mídia nos últimos anos. Frequentou espaços que não eram usuais para ela em anos e anos de cartunista: programas de TV, jornais e revistas. E Laerte não está nem aí se o tema das entrevistas gira agora muito mais em torno da questão do gênero do que de sua obra. Ela sabe bem que seu trabalho como artista é muito mais amplo.
Atuante também nas redes sociais, Laerte se tornou uma das pessoas mais influentes na internet em 2013. No ano passado, sua campanha Beijaço no Laerte, como protesto contra a atuação do deputado Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, foi um sucesso no Facebook.
Quer mudar a lei pelo direito das travestis usarem banheiro feminino, depois de ser impedida de fazê-lo numa pizzaria. E mostrou que também está disposta a brigar por outras causas, quando botou a boca no trombone ao saber do caso de uma mulher negra que foi assediada e humilhada num bar.
Laerte, quando faz o que faz e como faz, está a anos-luz de todos nós. O que ela propõe e deseja é um mundo pós-gênero, em que cada indivíduo possa se expressar em relação a isso da maneira que lhe for mais confortável. E isso é o futuro.
E como ela mesmo diz: não se trata de Carnaval, é a vida mesmo.
Crônica originalmente publicada no dia 08/01/14
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