A montadora sul-coreana Kia, controlada pela Hyundai, está negociando uma saída para uma dívida tributária bilionária com a União, em um caso conhecido nos tribunais como o "maior calote da União". 

A estratégia? Instalar uma linha de produção na atual planta da Hyundai em Piracicaba (SP), com a promessa de uma "nova fábrica" que, segundo fontes, pode ser somente uma adaptação das linhas existentes. 

Nos bastidores, a manobra teria o aval do governo Lula, levantando suspeitas de favorecimento político em troca de benefícios fiscais.

A origem da dívida bilionária

O débito da Kia remonta aos anos 1990, quando a Asia Motors do Brasil (AMB), então representante da marca no Brasil, aderiu a um programa de incentivos do governo para expandir a indústria automotiva.

Em troca de redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a empresa se comprometeu a construir uma fábrica em Camaçari (BA). O investimento, porém, nunca saiu do papel, apesar de mais de 20 mil veículos terem sido importados com alíquota reduzida.

A Fazenda Nacional cobra o valor atualizado de R$ 6 bilhões, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) devolveu em 2023 o caso à primeira instância, com a execução agora redirecionada à Kia Motors, sucessora da AMB.

A disputa mobiliza algumas das principais bancas de advogados tributaristas de São Paulo, com honorários estimados em até R$ 250 milhões. A Hyundai, controladora da Kia, também está na mira da cobrança, aumentando a pressão para uma solução.

A manobra em Piracicaba

Com o cerco judicial se fechando, a Kia encontrou uma possível saída: adaptar parte da planta da Hyundai em Piracicaba para produzir um de seus modelos vendidos no Brasil. 

Fontes próximas às negociações afirmam que a operação seria uma "maquiagem" – uma nova linha dentro da fábrica existente, apresentada como um investimento inédito.

O plano teria sido discutido diretamente pelo CEO mundial da Kia, Ho Sung Song, em reuniões recentes no Brasil com ministros do governo Lula e, possivelmente, com o próprio presidente.

A ideia é simples: ao instalar uma "nova fábrica", a Kia poderia negociar o perdão da dívida e acessar incentivos fiscais do programa Rota 2030, que reduz o IPI para montadoras locais.

A produção inicial seria de 50 mil unidades por ano, com o Sportage como provável escolhido para não competir diretamente com os modelos da Hyundai, como o Creta e o HB20, fabricados na mesma planta.

Aval do governo Lula

Segundo interlocutores no Planalto, o projeto foi apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva como uma “jogada política” capaz de gerar emprego em reduto tradicionalmente bolsonarista do interior paulista. 

Recentemente, o CEO global da Kia, Ho Sung Song, teria desembarcado no Brasil em missão não oficial, conduzida por um ex-ministro do primeiro governo Lula, hoje intercessor frequente junto à Hyundai.

Em conversas nos bastidores, o próprio Lula demonstrou simpatia pela proposta, alegando a necessidade de atrair investimentos e preservar empregos num momento de desaquecimento industrial.

Técnicos do Ministério da Fazenda, porém, recomendaram cautela — tanto para não reforçar a percepção de “favoritismo” a uma empresa com histórico de inadimplência, quanto para proteger a Hyundai de eventual redirecionamento de cobranças.

Kia vende pouco no Brasil

No Brasil, a Kia enfrenta dificuldades históricas. Representada exclusivamente pelo Grupo Gandini, do empresário José Luiz Gandini, da cidade de Itu (SP), a marca detém menos de 0,5% dos emplacamentos dos carros novos no país. 

Em 2024, a Kia vendeu 4.838 unidades no Brasil, um crescimento tímido de 7% puxado pelo comercial leve Bongo, feito no Uruguai, e isento de imposto de importação. 

Já o SUV Sportage, carro-chefe da marca no Brasil e importado da Coreia do Sul, sofre com os 35% de imposto sobre importados, o que o torna menos competitivo.

Gandini já declarou publicamente que produzir localmente no Brasil seria essencial para reduzir custos da Kia. "Com o dólar que nós estamos vivendo, pagando o imposto de importação, fica muito difícil competir", disse ele no início deste ano. 

O que dizem Kia e Hyundai?

Oficialmente, tanto a Kia como a Hyundai rechaçam o novo projeto na planta de Piracicaba (SP). Mas as movimentações recentes, somadas às declarações de Gandini e às reuniões de alto escalão, sugerem que a estratégia está em curso. 

"A Kia Brasil informa que desconhece a informação. Kia e Hyundai usualmente operam plantas próprias de cada marca", declarou a marca à reportagem. "Os rumores não procedem", reforçou a assessoria de imprensa da Hyundai Motor do Brasil (HMB).

Plano antigo, novas ambições

A ideia de fabricar no Brasil não é novidade para a Kia. Em 2012, especulou-se que a marca usaria a planta em Piracicaba (SP), então recém-inaugurada pela Hyundai, para produzir o Picanto e o Cerato, aproveitando incentivos do então programa do governo, o Inovar-Auto. 

O plano, porém, não se concretizou, e a Kia seguiu dependente de importações. Agora, com o foco em SUVs como o Sportage e o Stonic, a produção local volta à pauta como solução para driblar tributos e recuperar competitividade.

Em 2025, a Kia também ampliou seu portfólio no Brasil com a chegada do elétrico EV9 em fevereiro, fabricado no México e importado sem alíquota, graças ao acordo de livre comércio.

Precedente perigoso

Especialistas em direito tributário apontam que adotar medidas excepcionais para sanar o passivo da Kia pode abrir precedente perigoso.

"Se há perdão de dívida nesse patamar, governo algum terá autoridade para cobrar empresas que não honrarem compromissos”, alerta um jurista consultado sob condição de anonimato. 

Por outro lado, analistas de mercado destacam que a combinação entre sinergias industriais e incentivos fiscais pode reduzir custos e ampliar a competitividade da Kia num segmento estratégico.