Esta coluna, assim como o colunista, está de férias até o dia 6 de janeiro. Interrompo o descanso, excepcionalmente, pra falar sobre o novo técnico do Atlético. Ontem, já pensando sobre o que eu escreveria, me dei conta de que teria pela frente o texto mais desafiador desde o nascimento deste espaço.
O retorno de Cuca ao Galo é complexo, e quem simplifica a história ignora um dos lados irrefutáveis dela. Vamos começar esta coluna com a parte mais dura e, obviamente, mais relevante (bem mais que qualquer resultado esportivo de um treinador de futebol): em 1987, quando tinha 24 anos, Cuca, acompanhado de outros três jogadores do Grêmio, se envolveu sexualmente com uma menina de 13 anos, na Suíça (onde o clube gaúcho fazia uma excursão).
Isso não é minha opinião, e sim uma conclusão da justiça. Os jogadores foram condenados por “coação” e “ato sexual com uma pessoa menor de 16 anos”. O julgamento foi em 1989, quando os brasileiros já não estavam por lá. Três deles (Cuca e mais dois) foram condenados a 15 meses de cadeia, mas nunca cumpriram a pena, já que o Brasil não extradita cidadãos natos. O outro pegou pena mais branda, também não cumprida.
Cuca seguiu a vida normalmente. O crime prescreveu. A vítima morreu. Por mais de 30 anos, o assunto praticamente não repercutiu no noticiário esportivo brasileiro, e toda a imprensa que cobre futebol precisa fazer um mea-culpa sobre isso. O crime, obviamente, sempre foi relevante, mas só ganhou destaque nos últimos anos. Essa responsabilidade é de todos que cobriram o Cuca como atleta (pós-87) e como treinador (aqui, inclusive, estou eu).
O próprio Cuca já disse que isso não foi pauta antes porque não perguntavam, e nisso ele tem total razão. A imprensa da época fez piada com o episódio. Depois de ficarem presos por um mês (ainda em 87), os brasileiros foram recebidos em Porto Alegre com festa. Não havia, na sociedade como um todo, o entendimento da gravidade do episódio como existe hoje (significa que evoluímos. Que bom!). Isso, porém, não diminui a seriedade do que fizeram Cuca e seus então colegas.
Voltando aos fatos, a pressão sobre Cuca e sobre essa história ficou insustentável em 2023. Com o caso muito mais conhecido e com detalhes publicados, o treinador não pôde mais adotar o discurso de que era inocente. O GE, por exemplo, conseguiu, junto à justiça suíça, a confirmação de que havia sêmen de Cuca no corpo da vítima. Nessa época, ele teve uma passagem meteórica no Corinthians, de sete dias. A pressão da torcida e da imprensa forçou a interrupção do trabalho.
Cuca, ali, se viu obrigado a mudar o discurso. O “não tenho nada a ver com isso” não colava mais. Segundo ele, gastou uma fortuna com advogados para resolver, definitivamente, o caso na Suíça. Pediu um novo julgamento, alegando que não se defendeu em 1989.
Como não houve representante da vítima (ela já morreu, e o filho não quis reabrir o caso), a justiça suíça acatou o argumento da defesa de Cuca e anulou o julgamento de 1989. O treinador ainda foi indenizado e doou os mais de R$ 50 mil que recebeu.
A anulação do julgamento, como a palavra sintetiza, apaga toda a condenação de 1989. Cuca, perante a justiça, não deve mais nada. Pode, inclusive, visitar a Suíça quando quiser. Legalmente, a discussão acabou. Moralmente, grande parte das pessoas (inclusive eu) ainda se incomodavam com a postura de Cuca. Faltava a ele um pronunciamento mais sincero e robusto sobre o caso.
Neste ano, em março, quando treinava o Athletico, Cuca leu publicamente uma carta que, segundo ele, foi escrita com ajuda das mulheres de sua família. Disse, entre outras coisas, que sempre se calou porque “a sociedade permitia que ele, como homem, se calasse”, mas que passou a entender que “o silêncio soa como covardia”.
Enfim, um depoimento num tom mais condizente com a gravidade do episódio. Cuca prometeu, a partir dali, agir (e não só falar) na luta contra o machismo e a violência contra as mulheres. Tem feito, de fato, ações que visam combater a desigualdade de gênero, especialmente no esporte.
O que poderia ser feito para amenizar o peso do caso em sua imagem (já que apagar o episódio é impossível) foi feito. Cuca não deve mais nada à justiça. Falou abertamente sobre o episódio. Tem promovido ações inclusivas. Ainda assim, uma parcela da torcida do Atlético se revoltou com o anúncio da contratação, e, devido à gravidade do que aconteceu em Berna (irrefutável), a revolta é, sim, compreensível.
Não consigo, em nenhuma hipótese, apontar o dedo para aqueles que dizem que não vão acompanhar o time enquanto Cuca estiver no comando. Entendo a linha de raciocínio, apesar de não seguir por ela.
Vamos, agora, ao segundo fato irrefutável: quem praticou o crime foi o atleta Cuca, de 24 anos, em 1987. Quem foi contratado pelo Atlético agora foi o treinador Cuca, de 61 anos, em 2024. É a mesma pessoa? Sim e não. Estamos diante de um claro dilema moral.
Eu, particularmente, entendo que não sou juiz ou Deus para determinar quanto do Cuca de 1987 segue vivo no Cuca de 2024. Olhando para a repercussão do caso naquela época, tenho certeza que muitos que fizeram piada, se fossem confrontados hoje, sentiriam vergonha.
Deixo claro, com todas as letras, que isso não é uma tentativa de justificar o episódio, que é injustificável, e por isso acho perigoso que ele esteja num cargo que, naturalmente, coloca o ocupante num posto de ídolo de milhões de pessoas (a depender, claro, do resultado do trabalho dele).
Quanto a isso, sim, me preocupo. E me comprometo a cobrir o Cuca sem comentários e/ou avaliações pessoais, para não correr o risco de despertar gatilhos em pessoas que se sentem negativamente impactadas com a presença dele. Por outro lado, sou um jornalista que cobre esporte, e não posso condenar o trabalho de um profissional que está em dia com a justiça por razões pessoais, independentemente da minha percepção pessoal sobre o caso.
Esquecer o episódio de Berna é impossível. Conviver com Cuca como treinador do Galo é de cada um. Respeito aqueles que não conseguem e sigo em frente. Muito antes de ser o “Atlético do Cuca”, o Clube Atlético Mineiro já ocupava um lugar muito importante na minha vida. E vai ocupar pra sempre.
Esportivamente, que Cuca faça um bom trabalho. Fora do campo, que ele siga fazendo o que está ao alcance dele para combater a desigualdade de gênero que, embora menor que a que existia na década de 80, ainda é gigantesca.
Feliz ano novo. Saudações atleticanas.