O Ministério da Saúde prevê investir R$ 10,9 bilhões para compra de imunizantes em 2024. O valor corresponde a cerca de 5% do total do orçamento da pasta para o ano, que está na casa dos R$ 236,7 bilhões e representa quase o dobro do que foi aplicado para aquisição de vacinas no último ano - R$ 5,6 bilhões. No entanto, a ampliação do investimento - que conforme o órgão federal busca, dentre outras coisas, a retomada das altas coberturas vacinais do Brasil -, se esbarra em um fenômeno na crescente hesitação vacinal. 

O conceito de hesitação vacinal foi proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), referindo-se ao atraso na aceitação ou recusa da vacinação, apesar da disponibilidade dos imunizantes nos serviços de saúde. Em 2012, a organização identificou o aumento do número de países com alto índice de rejeição e criou um grupo de estudo para o fenômeno. Em 2014, lançou oficialmente um documento com a definição do termo e, em 2019, ainda antes da pandemia de Covid-19, a agência considerou a hesitação vacinal como uma das principais ameaças à saúde global.

Apesar de ser uma expressão relativamente recente, a gestora médica de Desenvolvimento Clínico do Butantan Carolina Barbieri afirma que os movimentos contrários sempre acompanharam a história da vacinologia. “Sempre que houve vacinação em massa, existiram reações discordantes. Isso vem desde o século XIX, quando a Inglaterra, os Estados Unidos e vários países da Europa já tinham algumas ligas antivacinistas. No Brasil, tivemos a Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro. O desconforto da imunização compulsória somou-se a movimentos políticos e desencadeou o movimento. Alguns estudiosos dizem que o incômodo com a vacina pode ter sido apenas o estopim para o motim popular.” 

Conforme Barbieri, depois desse período ocorreu um “silêncio histórico” dos grupos contrários à vacinação. “O Brasil, especificamente, se direcionou para um caminho oposto, construindo uma cultura imunizadora. Então fomos o primeiro país da América Latina a erradicar a varíola. Depois, criamos a campanha da pólio na década de 60. Já em 1973 foi construído o Plano Nacional de Imunização (PNI). Nos anos 2000, a gente passa a ter calendários por ciclo de vida, não só para criança, mas também para gestante, adolescente, adulto e idoso.”

Após ser visto como um exemplo a ser seguido, o Brasil começou o declínio da cobertura vacinal a partir de 2015. Segundo a gestora do Butantan, diversos fatores contribuíram para isso, como o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), falta pontuais de vacinas, dificuldade das famílias para chegar ao posto médico, as fake news, dentre outros. “Em paralelo a isso, a gente começa a identificar que alguns grupos com acesso e com maior escolaridade e renda estavam com coberturas mais baixas do que pessoas com menor poder aquisitivo e conhecimento, o que historicamente era o oposto. Quando houve essa inversão, podemos dizer que ficou mais evidente a hesitação vacinal.”

Hesitação vacinal x negacionismo 

Uma pesquisa do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) mostrou que 86% dos brasileiros acreditam que as vacinas são importantes para proteger a saúde pública. O estudo, divulgado em 2022, mostrou ainda que as pessoas confiam nas doses de reforço e na vacinação infantil. Também revelou que 75% dos entrevistados consideram que os imunizantes são seguros e 69% afirmaram que eles são necessários.

“As pesquisas deixam claro que a maioria da população acredita na importância da vacina. No entanto, os estudos mais recentes mostram que 20% das pessoas, em algum momento, deixaram de tomar alguma vacina. Metade desse total, não está indo se imunizar porque fica na dúvida. Muitos dizem: ‘ah, eu não tenho certeza se isso que ouvi é verdade, por isso não vou vacinar,’” ressalta a diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e membro do Conselho Consultivo da Vaccine Safety Net (VSN) da Organização Mundial da Saúde Isabella Ballalai.

Esse público dividido pela incerteza é classificado como hesitante. “Esse grupo não é necessariamente formado por pessoas anti-ciência ou anti-vacina. São indivíduos com receio dos efeitos e reações de alguma vacina específica. Eles escutam a medicina falando que é para vacinar e lêem os materiais - muito bem escritos dos antivacinistas -, que dizem o contrário. Então os pais não imunizam os filhos com medo de estar prejudicando em vez de estar protegendo. Esse é o grupo em que a gente mais tem que agir, porque dá para mudar a percepção dele,” destaca a presidente da SBIm Mônica Levi. 

Conforme Isabella, um dos fatores que mais influenciam essa alteração de entendimento é quando uma ameaça sanitária é identificada. “Quando os indivíduos percebem que sua família está em risco para determinada doença, mesmo sabendo de eventos adversos, preferem correr o perigo de contrair tudo o que ouve dos antivacinistas do que perder a vida ou perder quem ama. Mas quando a pessoa não se vê no risco, não adianta. Por exemplo, se alguém assistir na TV que a poliomielite está voltando ou que há um surto da doença, corre para o posto de saúde e faz fila.” 

A respeito do negacionismo, a gestora médica do Butantan Carolina Barbier afirma que o fenômeno integra outro escopo. “Não é uma questão específica só de vacina. Eles negam qualquer dado baseado em ciência, É uma forma de enxergarem o mundo e as explicações das coisas que não confiam ou não entendem.” Por sua vez, a presidente da SBIm Mônica Levi diz que esse público é formado por um princípio. “São contra todo e qualquer tipo de vacina, acreditam na naturopatia. Então acham que tendo uma vida saudável, os filhos não correm risco. E isso começou bem antes da pandemia de Covid e se agravou depois disso, porque toda a politização em cima da ciência e da vacina contra o coronavírus respingou nos demais imunizantes e prejudicou ainda mais a adesão da população.” 

As razões para a não vacinação 

Um exemplo de como a pandemia impactou e mudou a forma de algumas pessoas enxergarem a eficácia das vacinas é o de Michelle Queles Pimentel, de 43 anos. A professora, que mora em Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte, é mãe de Vitor, de 9. Ela conta que, até o aparecimento do coronavírus, o filho havia tomado todas as vacinas indicadas na caderneta infantil. “Eu e meu filho chegamos a tomar a primeira dose contra a Covid. Porém, a gente já tinha em mente que seria a única dose que receberíamos. Acredito que a população foi usada de cobaia. Não confiei e ainda não confio na eficácia dessa vacina. Também não entendo até hoje as múltiplas doses que foram e ainda serão aplicadas na população".

Michelle afirma que a caderneta do filho terá a indicação apenas dos imunizantes que ele já tomou quando bebê. “Não pretendo vaciná-lo contra o vírus influenza, HPV e coronavírus. Se surgirem novas vacinas, ele não vai tomar. Acredito que muitos dos males súbitos, surgimento de enfermidades que as pessoas antes não tinham, recorrências de resfriados e viroses, que os médicos nunca sabem, na verdade é consequência dessas vacinas. Por isso, aqui em casa tomamos chás caseiros e nos alimentamos bem para aumentar a imunidade. Acredito na imunização por meio de hábitos saudáveis.”

Mas nem todo mundo que deixa de vacinar os filhos tem tantas convicções quanto Michelle. Muitas vezes, a hesitação está ligada a dúvidas eventuais. Luana de Amorim - nome fictício, pois pediu para não ser identificada - é mãe de duas filhas. A jornalista de 45 anos lembra algumas situações em que diferentes opiniões de especialistas a deixaram em dúvida quanto à vacinação das garotas. 

“A primeira foi a H1N1. Minha menina mais velha era bem pequena e começamos a perguntar aos médicos se ela deveria tomar ou não. Alguns disseram que sim, outros que não. Mas demos. Depois, foi contra a paralisia infantil. A médica homeopata que a atendia falou para não dar, que ela já estava protegida por ter tomado as doses previstas no calendário. Mesmo assim acabei optando por vaciná-la”, lembra. 

Outra situação ocorreu envolvendo a vacina contra a febre amarela. “A médica homeopata disse para não vacinar minha filha mais velha, pois o imunizante tinha muitos efeitos colaterais. Quando chegou a hora de a mais nova tomar, a pediatra, que já era outra, disse que tinha que dar sim. Então, aproveitei e vacinei as duas,” recorda Luana, que acabou decidindo parar de levar a filha mais velha à médica que questionava a aplicação de alguns imunizantes. 

Como enfrentar a hesitação vacinal e as fake news

Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), chamada “Hesitação vacinal: por que estamos recuando em conquistas tão importantes?” ouviu mil pediatras brasileiros e elencou as razões apresentadas pelos pais nas consultas médicas para não vacinar os filhos. O medo de possíveis eventos adversos foi apontado por 19,76% dos entrevistados. Em seguida aparecem: a falta de confiança nas vacinas (19,27%); o “esquecimento” (17,98%); a ausência de imunizantes no serviço público (17,58%); e o preço das vacinas nos serviços privados (10,69%). O estudo foi publicado em maio de 2023.

“Acho que o grande desafio para nós hoje é preparar os profissionais da saúde, especialmente os pediatras, para saber ter essa conversa, que não deve ser de confronto. O poder do convencimento médico ainda é muito grande. E esse momento da contestação e da discussão sobre a importância, a necessidade e especialmente os riscos da não vacinação, veio para ficar. Por isso é necessário um esforço conjunto de autoridades médicas e órgãos de saúde,” evidencia o presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) Renato Kfouri.

Para Kfouri, é preciso adotar estratégias diferentes para cada canto do país. “O Brasil é muito diverso. E as razões da não vacinação nas diferentes regiões do país não são as mesmas. Não podemos e nem devemos mais ter ações ou campanhas únicas no país como um todo.” Já a diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) Isabella Ballalai diz que é necessário uma mudança de abordagem. “É preciso fazer um discurso mais empático, que realmente mostre que a preocupação não é só com a cobertura vacinal, mas com a saúde das pessoas. E claro, para nós é a mesma coisa, mas é diferente do ponto de vista de quem ouve. As pessoas têm que entender que vacina é para o resto das nossas vidas. Nunca vamos parar de vacinar, mas conseguiremos proteger a população.”

Sobre as notícias falsas, a presidente da SBIm Mônica Levi destaca que “uma fake news em medicina causa muitos danos. Eu sempre digo, é fácil você enganar, mas depois que engana, tirar isso é muito difícil. E quando a ciência responde a todas essas acusações inverídicas, o que acabam fazendo esses grupos antivacinas é criando teorias da conspiração. Mas é importante ressaltar que a vacina foi a intervenção em saúde pública que mais causou aumento de expectativa e qualidade de vida na população mundial.” 

Por sua vez, a gestora médica de Desenvolvimento Clínico do Butantan Carolina Barbieri enfatiza que é preciso enfrentar as fake news com divulgações baseadas em ciência e muita transparência. “A hesitação vacinal é algo legítimo do ser humano. Mas é fundamental mostrar que temos séculos de experiência com vacinas e evidências científicas que mostram o quanto elas são seguras. Lógico que cada imunizante vai ter alguns efeitos colaterais e adversos, mas isso está descrito com muita transparência em bulas e documentos.” 

O caminho para a retomada 

Em julho deste ano, o relatório anual global do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que em todo o mundo, 2,7 milhões de crianças continuam sem vacinação ou estão com a imunização abaixo do preconizado. Enquanto o índice global mostrou um aumento no número de crianças sem nenhuma dose ou com doses em atraso, o Brasil fez o movimento contrário e saiu da lista dos 20 países com mais crianças não imunizadas no mundo. Segundo o relatório, o total de crianças brasileiras que não receberam nenhuma dose da DTP1 (que protege contra difteria, tétano e coqueluche) diminuiu de 687 mil em 2021 para 103 mil em 2023.

“O Brasil está progredindo. A gente continua sempre em tendência de aumento da cobertura vacinal, mas ainda em passos lentos. O que é de se esperar, uma vez que hoje a gente tem uma população diferente, com comportamentos diversificados. Por isso precisamos adotar cada vez mais estratégias para levar vacina às pessoas,” explica a diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) Isabella Ballalai. 

Conforme o Ministério da Saúde, a reversão do cenário de queda foi impactada com o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação - que conseguiu aumentar as taxas de vacinados no país -, e pelo programa Saúde com Ciência - que tem o objetivo de ajudar na defesa da vacinação, na valorização da ciência e no combate à desinformação. Ambos foram criados em 2023. “Além disso, foram feitas ações de microplanejamento, com investimentos de cerca de R$ 150 milhões, que orientam as ações dos estados e municípios voltadas para as realidades locais, alcançando, dessa forma, públicos específicos,” afirma a pasta.