Crianças e adolescentes que vivem na região amazônica estão sob risco maior de se tornarem vítimas de violência sexual e de assassinatos em comparação com o restante do Brasil, aponta um estudo lançado nesta quinta-feira (14/8) pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Foram registrados 38 mil estupros e quase 3.000 mortes violentas intencionais de vítimas com até 19 anos de idade na Amazônia Legal, entre 2021 e 2023. A taxa de violência sexual no conjunto dos estados da Amazônia Legal, em 2023, era 21,4% maior do que a média brasileira.
Seis estados da região amazônica -Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Pará, Tocantins e Acre- estavam na lista das dez maiores taxas de violência sexual contra vítimas de 0 a 19 anos em 2023. Os municípios localizados a uma distância de até 150 km da faixa de fronteira do Brasil têm, ainda, um índice de estupros maior do que a média da região.
Embora o foco do estudo seja a comparação dos índices de violência da Amazônia com o restante do país, sem se aprofundar nos motivos da violência sexual nessa região, os pesquisadores mostram que a maioria dos casos ocorre dentro das próprias casas das vítimas.
Além disso, há indícios de que o crescimento dos garimpos ilegais e do narcotráfico na região, assim como as dificuldades que o poder público enfrenta para atender comunidades isoladas na floresta, pode ter levado ao aumento da exploração sexual de menores de idade.
"Municípios que vivem situações de conflitos de terra, garimpo, [estão na] fronteira, precisam ter uma rede de proteção fortalecida para que se consiga realmente endereçar as causas da violência sexual", disse à Folha de S.Paulo a oficial de Proteção contra a Violência do Unicef no Brasil, Nayana Lorena da Silva. "A violência é causada por muitos fatores."
Casos de exploração sexual infantil estiveram no centro do debate político nesta semana após a divulgação do vídeo "Adultização", do youtuber Felca, que denuncia crimes contra crianças e adolescentes. A gravação, de 50 minutos, apresenta diversas situações em que crianças têm sua imagem explorada, tanto por pais quanto por outros adultos, que lucram com os vídeos publicados.
Após a repercussão do vídeo, o governo Lula (PT) anunciou que vai enviar ao Congresso um projeto de lei de proteção de crianças e adolescentes online. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), afirmou que o tema será prioridade e anunciou a criação de uma comissão e de um grupo de trabalho sobre o tema.
Na Amazônia, apesar de grande parte do território ter muito menos acesso à infraestrutura de comunicação e de transporte, a internet já está presente em comunidades isoladas. Além disso, a chegada dos serviços de satélite de baixa órbita -para quem tem dinheiro dinheiro para pagar por serviços como o Starlink- levou a internet para áreas antes inacessíveis da floresta. Para a oficial do Unicef, a influência da internet não pode ser descartada no contexto de violência sexual da Amazônia.
"A internet tem sido um fator de violência contra a criança", afirmou Nayana. "Agora é o momento de analisarmos os impactos da internet, dessa exposição de crianças e adolescentes no âmbito online e como isso tem influenciado o aumento dessas taxas [de violência sexual] nesses territórios."
O município de Uiramutã, em Roraima, teve o maior número de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes na Amazônia Legal no período de 2021 a 2023. O município está na fronteira com a Guiana, confirmando a tendência identificada pelo estudo de maior prevalência de crimes sexuais contra vítimas dessa faixa etária nas regiões fronteiriças.
Entre as nove capitais da região amazônia, Porto Velho (RO) registrou a maior taxa de violência sexual, com 259,3 estupros por 100 mil crianças e adolescentes. Em seguida estão Boa Vista (RR), com taxa de 240,4, e Cuiabá, com 184,5. As menores taxas da região estão nos estados do Maranhão e do Amazonas, tanto no contexto estadual quanto nas respectivas capitais, São Luís (taxa de 81,2) e Manaus (101,2).
O estudo identificou, também, uma incidência maior de violência sexual contra crianças e adolescentes negros. De 2021 a 2023, 81% das vítimas de estupro da região eram pretas e pardas, 16% eram brancas e 2,6% eram indígenas. Os pesquisadores especulam que a subnotificação de casos pode ter afetado esses resultados.
"A situação observada na Amazônia Legal pode apontar não apenas para uma maior vulnerabilidade, mas também para um padrão de subnotificação distinto daquele que predomina no restante do país", escreveram os pesquisadores. Eles não estimaram a taxa de subnotificação dos casos.
A pesquisa também traz dados de outros tipos de violência contra crianças e adolescentes na região. Ela aponta, por exemplo, que entre os jovens de 15 a 19 anos dos centros urbanos da Amazônia a probabilidade de se tornar vítima de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte ou morte por intervenção policial é 27% maior em comparação com brasileiros da mesma faixa etária no restante do
país.
Entre as recomendações dos autores para o enfrentamento ao problema estão treinar profissionais que trabalham com crianças e adolescentes na região, ampliar o acesso a informações sobre o direito à proteção e aos serviços de proteção, fortalecer órgãos policiais e de fiscalização e investir em pesquisas sobre as comunidades amazônicas.