Já pensou quanta riqueza pode estar escondida em um computador ou um celular? Quantas criptomoedas ou obras de arte digitais podem estar em um componente eletrônico, que deixa de ser acessado depois da morte de seu dono? As mudanças consistentes na forma se acumular capital acabaram gerando um grande debate no universo judiciário. É preciso definir como herdeiros terão acesso a possíveis riquezas digitais deixadas por quem morreu, mas sem ferir preceitos básicos do Direito.

Neste momento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) está discutindo o conceito de "herança digital", o que pode abrir precedentes importantes sobre a sucessão de bens virtuais, privacidade e direitos. O caso em questão foi movido pela mãe de uma das vítimas do acidente aéreo que matou o empresário Roger Agnelli e sua família. A pessoa pediu permissão da Justiça para acessar o computador, em busca de patrimônio financeiro e ativos de valor sentimental, como fotografias e outros registros. 

Mas essa é uma questão delicada, porque a Justiça entende que o direito à intimidade permanece mesmo depois da morte. A relatora no STJ, ministra Nancy Andrighi, destacou que a situação é novíssima no Direito brasileiro, sem precedentes ou doutrina consolidada sobre o procedimento. Dessa forma, ela propôs a nomeação de um “inventariante digital”, uma pessoa escolhida pelo Judiciário para elaborar um relatório sobre o conteúdo encontrado e deixar para que um magistrado possa determinar o que pode ou não ser passado aos herdeiros. 

Digitalização massiva do patrimônio

Alexandre Atheniense, advogado e especialista em Direito Digital, afirma que casos semelhantes se multiplicam exponencialmente na Justiça, obrigando os ministros a se debruçar sobre uma decisão que servirá de jurisprudência para outras ações. 

“A importância atual dessa discussão decorre de três fatores principais: primeiro, a digitalização massiva do patrimônio. Hoje, uma parcela significativa da riqueza das pessoas está em formato digital - criptomoedas, NFTs, direitos autorais digitais, domínios de websites, aplicativos. Segundo, a desmaterialização das relações jurídicas - contratos, documentos, registros financeiros estão predominantemente em meio digital. Terceiro, o valor afetivo inestimável de fotografias, vídeos, correspondências e registros pessoais armazenados digitalmente”, explica.

Atheniense afirma que a liberação irrestrita do acesso ao computador ou às contas digitais de uma pessoa falecida pode parecer, à primeira vista, uma solução prática para resolver a chamada herança digital. Porém, do ponto de vista jurídico, essa prática envolve riscos sérios e potenciais violações legais, que vão muito além da simples transferência de bens físicos.

Deve-se considerar os direitos da Personalidade e da Intimidade. Além disso, se o herdeiro, ao acessar o computador, tiver contato com dados de terceiros (contratos, conversas privadas, informações bancárias), pode incorrer em responsabilidade criminal por uso indevido de dados. Vale lembrar que o computador de um médico, um psicólogo, um contador ou um advogado, por exemplo, pode conter muitos documentos sigilosos.

Também é fundamental entender que há limites na sucessão digital. “O Código Civil prevê a transmissão de direitos patrimoniais aos herdeiros, mas não autoriza automaticamente o acesso a dados personalíssimos do falecido”, argumenta o especialista.

“O acesso indiscriminado pode expor informações protegidas constitucionalmente. Como exemplificou brilhantemente a Ministra Nancy Andrighi, imagine descobrir um relacionamento afetivo secreto do falecido. Essa informação, protegida pelo direito à intimidade, não pode ser objeto de divulgação, mesmo após a morte”, exemplifica.

Nem tudo se transmite

Segundo Atheniense, há uma grande lista de bens que podem ser encontrados num dispositivo eletrônico. E é fundamental diferenciar o que pode ser passado para herdeiros e o que vai continuar sendo mantido em segredo. “A distinção é crucial porque os bens patrimoniais integram o patrimônio sucessório, enquanto os existenciais são protegidos pelos direitos da personalidade, exigindo tratamento diferenciado no inventário”.


Veja quais são os bens que podem ser encontrados num dispositivo, segundo Atheniense:


BENS DIGITAIS PATRIMONIAIS (Transmissíveis)

Ativos Financeiros Digitais:

Criptomoedas (Bitcoin, Ethereum, altcoins)

NFTs (Non-Fungible Tokens)

Tokens de utilidade e investimento

Contas em exchanges e carteiras digitais

Propriedade Intelectual Digital:

Direitos autorais sobre obras digitais

E-books e publicações eletrônicas

Softwares e aplicativos desenvolvidos

Cursos online e conteúdo educacional

Fotografias e vídeos com valor comercial

Ativos Comerciais:

Domínios de websites

Lojas virtuais e e-commerces

Contas monetizadas em plataformas (YouTube, Instagram)

Cupons e créditos eletrônicos

Assinaturas e licenças de software


BENS DIGITAIS EXISTENCIAIS (Intransmissíveis)

Dados Pessoais Protegidos:

Correspondências eletrônicas privadas

Registros médicos e de saúde

Dados biométricos

Informações íntimas e relacionamentos afetivos

Conteúdo de Valor Afetivo:

Fotografias familiares

Vídeos pessoais

Diários digitais

Conversas em aplicativos de mensagem