Preconceito

Brasil tem pelo menos 77 leis antitrans em vigor em 18 estados

Mais de um terço dessas normas entrou em vigor no ano passado

Por Agências
Publicado em 28 de janeiro de 2024 | 10:51
 
 
 
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O Brasil tem um número crescente de leis que buscam cercear direitos de pessoas trans. Levantamento diz que há pelo menos 77 leis municipais e estaduais antitrans em vigor em 18 unidades da federação --mais de um terço dessas normas entrou em vigor no ano passado.

Proponentes dessas leis negam que elas tenham caráter antitrans, afirmando que ajudam a proteger os direitos de crianças e mulheres e a resguardar a liberdade religiosa. Por outro lado, especialistas dizem que essas normas promovem a institucionalização da transfobia e podem estimular a violência contra uma das parcelas mais marginalizadas da população.

Boa parte dessas normas veda o uso da chamada linguagem neutra ou impede debates sobre a temática de gênero nas escolas, contrariando decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao menos 11 leis antitrans já foram consideradas inconstitucionais pela Justiça.

Há também restrições ao compartilhamento de banheiros e à participação de atletas trans em competições esportivas. Outras normas proíbem crianças e adolescentes trans de acessar determinados serviços de saúde e de participar de Paradas do Orgulho LGBTQIA+. Existem ainda leis que buscam censurar materiais publicitários com conteúdos alusivos à diversidade de gênero.

O número de normas antitrans em vigor pode ser ainda maior, uma vez que a busca de leis municipais se restringiu a cidades com mais de 100 mil habitantes. Esses locais concentram 57% da população do país, mas representam somente 5,7% do total de municípios, de acordo com dados do Censo de 2022 do IBGE.

As primeiras leis deste tipo do país foram promulgadas em 2015 em Novo Gama (GO), uma cidade-satélite de Brasília. Uma delas, que proíbe o ensino da chamada ideologia de gênero nas escolas do município, foi considerada inconstitucional pelo STF em 2020.

O ritmo de produção dessas normas acelerou a partir de 2021. Naquele ano, foi promulgada em Rondônia a primeira lei estadual antitrans, que proíbe a linguagem neutra nas escolas --o STF declarou a sua inconstitucionalidade no ano passado, por entender que o assunto é de competência da União e foge da alçada dos estados e municípios.

Em 2023, com a ida do bolsonarismo para a oposição no Congresso Nacional, a agenda antitrans se consolidou como prioridade desse grupo político no Legislativo. O país ganhou, em média, uma nova lei do tipo a cada duas semanas ao longo do ano passado.

Em Boa Vista (RR), há quatro leis antitrans em vigor. Nos últimos dois anos, passou a ser proibido debater gênero, usar linguagem neutra e instalar banheiros unissex nas escolas do município, e também entrou em vigor uma lei de veto esportivo.

A refugiada venezuelana Paola Abache, que é trans, relata já ter sido impedida de acessar banheiros femininos na cidade. Jogadora de vôlei, também diz ter sido proibida de jogar com outras mulheres devido à sua identidade de gênero.

"Na Venezuela, eu sofria discriminação porque o país infelizmente não tem leis para proteger a população trans. Pensei que aqui no Brasil os nossos direitos seriam respeitados, mas não foi o que aconteceu", afirma.

Quando soube da existência das leis antitrans, Abache, 23, diz que "foi como levar um soco". Por outro lado, a refugiada conta ter sido bem recebida pela comunidade LGBT+ da capital roraimense. "Conheci muitas pessoas maravilhosas que abriram as portas para mim. É graças a elas que estou forte", diz.

Em março do ano passado, o jornal "Folha de S.Paulo" já havia noticiado uma avalanche sem precedentes de projetos de lei antitrans. O novo levantamento identificou 293 PLs do tipo protocolados em 2023, muitos dos quais seguem em tramitação e podem virar lei no futuro.

À frente está o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas também há propostas de outras legendas, como Republicanos, União Brasil, PP, MDB e PSDB. A agenda antitrans poderá ser explorada por esses legisladores na campanha das eleições municipais de outubro de 2024, segundo analistas.

Para Amanda Souto Baliza, presidente da comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB Nacional (Organização dos Advogados do Brasil), a estratégia desses parlamentares pode ser descrita como uma "blitzkrieg legislativa".

A especialista representa entidades da sociedade civil em ações na Justiça para tentar anular os efeitos de algumas dessas leis, mas diz que o volume de normas acaba dificultando o processo.

"É um ataque relâmpago contra os direitos LGBT+. Começa quando alguma desinformação contra essa parcela da população viraliza, gerando pânico moral. Daí, grupos extremistas criam um modelo de PL e o distribuem em municípios e estados. Alguns desses projetos viram lei. Como o fenômeno ocorre ao mesmo tempo no país inteiro, isso acaba sobrecarregando o movimento social e os tribunais", afirma.

Baliza pondera que a bancada antitrans ainda não tem uma base forte o suficiente para aprovar leis federais que pudessem promover uma segregação mais intensa. A especialista também lembra que o movimento LGBTQIA+ tem se organizado para frear a perda de direitos, mas receia que o cenário se torne mais desfavorável nos próximos dez ou quinze anos.

No final do ano passado, o Senado incluiu na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) proibição para que o Orçamento de 2024 fosse usado em ações para influenciar crianças e adolescentes a fazer transição de gênero, mas o trecho acabou sendo vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Julia Ehrt, diretora-executiva da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Interssexuais (Ilga), vê com preocupação o avanço das leis antitrans no Brasil. Ela lembra que a ofensiva contra os direitos da população LGBT+ é um fenômeno que se estende desde democracias consolidadas, como os EUA e o Reino Unido, até regimes autoritários como Rússia e Uganda.

"A narrativa antitrans é parte de um movimento mais amplo contra os direitos LGBT+ e das mulheres. Há organizações com muitos recursos que trabalham para avançar essas agendas globalmente", afirma Ehrt. Ela defende que esses grupos se articulem em nível internacional para fazer frente à ofensiva conservadora.

PARLAMENTARES NEGAM DISCRIMINAÇÃO

Parlamentares ouvidos pela reportagem negam que as leis citadas tenham caráter antitrans e afirmam buscar a garantia de direitos para outros grupos diante de uma suposta ameaça representada por pessoas trans.

O vereador Ilderson Pereira Silva (PTB), autor de leis sobre banheiros e esportes em Boa Vista, afirma que seu intuito é prevenir casos de assédio.

"A lei em questão trata especificamente de banheiros e vestiários nas escolas públicas e privadas. Pessoas do sexo feminino se sentem desconfortáveis com a presença uma pessoa transgênero em um ambiente que, por mais que seja compartilhado, ainda é um espaço íntimo", diz em nota.

O parlamentar também diz buscar a garantia da equidade no esporte. "Mesmo que com mudanças estéticas e hormonais, haja possibilidades de diminuição da resistência muscular e capacidade aeróbica na comparação entre uma mulher trans e um homem cisgênero, ainda não há estudos suficientes sobre o caso", afirma Silva.

O parlamentar também diz que conta com pessoas trans em sua equipe e que as trata pelo nome social.

Já o vereador Zelio Mota (PSD), autor da lei sobre linguagem neutra em Boa Vista, nega haver cerceamento de direitos e afirma que seu objetivo é garantir os direitos das crianças e pré-adolescentes de serem alfabetizados com a norma culta da língua portuguesa.

Ele afirma respeitar a decisão do STF que derrubou a lei de Rondônia sobre linguagem neutra. "É notório que a lei municipal não fere princípios da nossa Constituição Federal, está em total consonância com as normas vigentes da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e assegura o uso da língua oficial brasileira nas escolas municipais", diz Mota em nota.

A vereadora Flávia Borja (PP), autora de uma lei que garante a instituições religiosas e escolas confessionais de Belo Horizonte (MG) a atribuição do uso de seus banheiros de acordo com a definição biológica de sexo, afirma que "quando alguém tenta, de forma agressiva, impor suas vontades dentro desses lugares nós entendemos que o desejo primário é afrontar a fé que é professada ali".

"Por isso, essa lei aprovada em BH é necessária para uma melhor segurança jurídica de líderes religiosos e instituições educacionais confessionais", afirma em nota Borja, que também é pastora da Igreja Batista da Lagoinha.

A reportagem procurou o deputado estadual Eyder Brasil (PL-RO), autor da lei sobre linguagem neutra em Rondônia, mas não obteve resposta. A Prefeitura e a Câmara Municipal de Novo Gama (GO) também foram procuradas, mas não se manifestaram. A assessoria do PL também não respondeu.

(DANI AVELAR | FOLHAPRESS) 

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