Por ser impossível “presumir que a motivação da conduta dos réus era revestida de caráter discriminatório”, a denúncia contra três promoters da extinta boate Swingers foi considerada improcedente pela juíza Kenea Márcia Damato de Moura Gomes, da 12ª Vara Criminal de Belo Horizonte. 

A decisão foi publicada na terça-feira da semana passada, dois dias depois de uma reportagem de O TEMPO expor detalhes do caso. O promotor de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Belo Horizonte, Mário Konichi Higuchi Júnior, que considera o caso como “emblemático das práticas racistas que perduram no cotidiano mineiro”, garante que vai apelar da decisão.

O processo corria na Justiça desde 2017, quando o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) remeteu ao judiciário o relatório decorrente de um Procedimento Criminal Investigatório (PIC) reunindo 30 relatos de pessoas que se disseram vítima de discriminação por raça ou cor ao serem impedidas de entrar na casa noturna. Os depoimentos descrevem uma mesma prática dos acusados: clientes negros eram barrados sob o pretexto de que a boate estaria lotada para não sócios e de que seus nomes não constavam em listas de convidados. Um promoter auxiliar, que tentou celebrar o próprio aniversário no lugar quando dois amigos seus foram barrados, reforça a acusação: segundo ele, a orientação era “colocar pessoas bonitas pra dentro”. “Se a pessoa fosse negra, feia ou aparentasse ser pobre, não entrava, sob o argumento de que a casa estava lotada”.

Na decisão, a magistrada cita que, durante a instrução, foram ouvidas 19 testemunhas arroladas pela Promotoria de Direitos Humanos de BH e 11 de defesa, e argumenta que, “diante das circunstâncias dos fatos narrados na denúncia e de toda a prova colhida sob o crivo do contraditório, não há como afirmar que os acusados impediam a entrada das pessoas na boate Swingers motivados pelo fato de serem negras”.

Inocentados, os três réus rechaçam as acusações, dizem não se lembrar da maioria dos casos e explicam que a lista de convidados para aniversariantes, citada por algumas das supostas vítimas, era apenas uma cortesia, mas não garantia a entrada de clientes caso houvesse lotação. Eles, todavia, não explicam porque teriam dito, conforme relatos das testemunhas, que o nome dessas pessoas não estaria nas listas.

A juíza anota, ainda, que “é exatamente porque a conduta preconceituosa resultante da discriminação da raça ou cor se manifesta em situações discretas, que não se pode presumir o dolo, sob pena da imputação objetiva”. Este, de fato, é o principal entrave para condenações da prática racista sejam mais frequentes, aponta o presidente da comissão de promoção da igualdade racial da Ordem dos Advogados do Brasil da seção de Minas Gerais, Gilberto Silva. “Todo processo é devidamente instruído com a constituição probatória e temos o problema do racismo velado, institucional, em que é difícil encontrar elementos concretos”, examina. 

“É mais fácil gerar prova quando há palavras que denotam racismo diretamente, mas há várias formas de discriminação racial”, sugere, citando como exemplo a proibição de acesso a um espaço. “Mas as pessoas conseguem camuflar isso muito bem, principalmente nas casas de show. A gente vê, por exemplo, que a análise de quem vai entrar em certas casas é feita, muitas vezes, através do perfil nas redes sociais, de forma que pode-se apartar um certo público”, reforça.

Para professora, decisão é "deboche"

Entre as 30 pessoas que se disseram vítimas de prática racista ao tentarem entrar na extinta boate Swingers, ouvidas pela Pomotoria de Direitos Humanos de BH, está a professora Rayannie Mendes, 24. À época com 18 anos, ela iria ao aniversário de um amigo, mas foi barrada sob pretexto de que seu nome não estaria na lista de convidados e de que a casa estaria lotada para não clientes. No entanto, viu quando conhecidos seus em mesma situação conseguiram entrar no lugar.

Para ela, a diferença entre os dois grupos está na pele: elas, negras, não estão credenciadas; eles, brancos, eram bem-vindos. Diante disso, Rayannie acionou a polícia e fez Registro de Eventos de Defesa Social (Reds) – antigo Boletim de Ocorrência (BO).

O caso foi um dos 535 relatados em Minas Gerais naquele 2014, conforme levantamento da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp). Neste ano, até setembro, portanto em 273 dias, foram 294 queixas por discriminação racial – a média é de um novo caso a cada 22 horas e 16 minutos.

E esse é um número que tende a ser subestimado, pois, muitas vezes, a vítima deixa de fazer a denúncia paralisada por uma sensação vergonha ou por imaginar que crimes raciais não são punidos. Rayannie, por exemplo, não acreditava que o processo fosse avançar. Três anos depois, foi uma "surpresa" quando o Ministério Público estadual entrou em contato com ela.

Na iminência de a denúncia ir a juízo, a professora parecia confiante de que o caso terminaria em condenação. “São mais de 30 pessoas descrevendo a mesma prática. Se isso não for racismo, se não der em nada, nada mais dá”, chegou a dizer à reportagem há duas semanas.

Agora, ao saber da decisão judicial, ela se resigna. “É um deboche”, critica. Para Rayannie, a mensagem que fica é a de que “está tudo bem não permitir que negros entrem nos lugares”. “A partir de agora vou pensar duas vezes antes de ir a certas boates. Prefiro ficar em casa a passar por esse constrangimento”, lamenta.