Abusos psicológicos e físicos, falta de acesso a medicamentos para tratamento hormonal e desrespeito a identidade de gênero e nomes sociais. Essas são as principais violações enfrentadas por uma parte das mais de 1,5 mil pessoas LGBTQIAPN+ privadas de liberdade que estão sob tutela do governo de Minas, alocados em um único presídio destinado a esse público ou em alas específicas nas unidades do Estado. A denúncia é feita por detentos, familiares e pesquisadores da causa, que cobram tratamento digno e respeito. A nomenclatura representa lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais e não-binários.
“É suícidio que na verdade é homicídio, medicamento em excesso ou escasso e alimentação de péssima qualidade. O pior é a fraude do atestado de gênero, que muitos héteros colocam que são bisexuais para ir para o presídio por ser ‘mais seguro’. Eu já sofri maldade dessas pessoas duas ou três vezes. Você cede porque se não te batem e te machucam, eu via gente sofrendo e pedindo socorro”, o relato impactante é de Amanilson Domingues, ex-detento da Penitenciária Jason Soares Albergaria (PPJSA), em São Joaquim de Bicas. A unidade é a única do Estado que recebe exclusivamente pessoas LGBTQIAPN+.
Localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, a unidade tem 412 vagas. Além da penitenciária, segundo informou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), todas as 19 Regiões Integradas de Segurança Pública (RISPs) são atendidas com alas específicas para esse público, permitindo o cumprimento de pena mais próximo à família. A pasta garante que todas as unidades possuem acompanhamento médico e psicossocial para esse público. Apesar disso, familiares e especialistas em atendimento a pessoas LGBTQIANP+ relatam um cenário diferente encontrado na Penitenciária Jason Soares Albergaria, considerada “modelo” em atendimento à comunidade.
“Há alguns anos tivemos um ‘surto’ de suicídios na Jason. Mas houve uma diminuição de casos após o Estado investir em uma equipe multidisciplinar, que começou a cuidar dessa população. No entanto, o Estado não deu continuidade e os contratos venceram em maio e junho. A equipe está sendo desmantelada, foi uma política penitenciária descontinuada”. A situação é revelada pela advogada Isabela Corby, cofundadora da Assessoria Popular Maria Felipa — instituição sem fins lucrativos que oferece apoio jurídico a mulheres e pessoas LGBTQIANP+ privadas de liberdade — e integrante do grupo de pesquisa Polos da UFMG.
A advogada explica que pessoas LGBTQIAPN+ privadas da liberdade carecem de atendimento psicológico, psiquiátrico e de assistência social devido a estarem inseridos em uma trajetória de violência. Isso porque o atendimento é essencial para garantir a ressocialização dessa comunidade e a não reincidência. “Ressocializar quem nunca foi cuidado socialmente é muito difícil. São pessoas expulsas de casas por sua orientação afetiva sexual e com histórico de violência. Tem pessoas na Jason que não recebem visita há quatro anos”, pontua.
Em nota, a Sejusp admite a retirada de parte da equipe técnica da unidade. Segundo a pasta, a situação ocorreu em virtude do encerramento do contrato de trabalho dos prestadores de serviço admitidos por meio de Processo Seletivo Simplificado/PSS. Entretanto, garante que permanecem em atividade os profissionais efetivos, enquanto é tramitado administrativamente novo processo seletivo para recomposição do quadro de prestadores de serviço.
Desrespeito ao nome social
A falta de acesso a tratamentos básicos se une ao despreparo do sistema penitenciário para acolher pessoas LGBTQIANP+, submetendo a comunidade a situações de desrespeito. Representante dos familiares dos privados da liberdade que cumprem pena na Jason Albergaria, Sandra Leah, conta que a maior reclamação ocorre pelo desrespeito ao nome social — nome com o qual uma pessoa quer ser tratada, independentemente do motivo e dos registros civis. “Falta um preparo e uma política de treinamento. Alguns policiais penais insistem em desrespeitar o nome social e a identidade de gênero. Na Jason há mais preparo, justamente por ser destinada para esse público, mas mesmo assim ainda acontece. Em outras unidades é ainda pior”, lamenta.
Outra violação é em relação à falta de continuidade da hormonização. O tratamento, feito sob orientação médica, é usado para induzir mudanças corporais que fazem com que a aparência física da pessoa esteja de acordo com sua identidade de gênero, possibilitando maior bem-estar mental, emocional e físico. “Se a pessoa está em liberdade e faz uso de hormônio, ao ficar privada ela não consegue ter acesso a esse medicamento. Isso traz prejuízos físicos, emocionais e mentais para ela durante o cumprimento da pena”, alerta Sandra Leah.
Para Samuel Silva, psicólogo dedicado às pessoas LGBTQIAPN+, a não garantia de acessos à atendimentos multidisciplinares, hormonização e respeito ao nome social fere a dignidade dessas pessoas e pode ser vista como forma de punição além da pena imposta pela Justiça. “É como se dois crimes fossem cometidos: o primeiro, o delito que a privou de liberdade; o segundo, ser LGBTQIAPN+. Para o primeiro cabe a sentença legal, para o segundo as punições morais. Assim, tanto por parte de colegas de encarceramento quanto por parte dos profissionais que deveriam cuidar da civilidade e garantia do cumprimento da pena, a pessoa tem seus direitos repetidamente violados. Como impacto dessa dupla penalização a pessoa sofre não apenas pelo que fez, mas também por ser quem é’, avalia.
O psicólogo pontua que a execução penal também deve ser uma forma de resgatar a humanidade dessa pessoa. “Por trás do seu ato criminal, existe quem ela é. E sim, esse acolhimento poderá ter impactos positivos diretos na ressocialização adequada. Afinal, é o que deveríamos buscar visando uma sociedade mais harmônica. Ajudar a pessoa a compreender o seu ato e elaborar novas formas de lidar com sua realidade são passos para a não reincidência. E essa compreensão será fruto de uma pena cumprida com civilidade e não com mais violência infligida à pessoa privada de liberdade”, afirma.
Autodeclaração de gênero
A transferência para unidades ou alas específicas para pessoas LGBTQIAPN+ no sistema prisional acontece mediante formalização da autodeclaração e manifestação de expressa vontade. Segundo o governo de Minas, todos os pedidos são avaliados para encaminhamento e não há fila de espera. No entanto, segundo fontes ouvidas por O TEMPO, no Estado há uma “política” de fraude do atestado. Isso ocorre com presos que se veem em perigo em outros presídios — muitas vezes ameaçados por outros detentos. Com isso, eles acabam assinando o atestado de gênero para fugir da violência.
“Hoje a maior parte dos presos da Jason são héterossexuais. O espaço das pessoas LGBTQIAPN+ está sendo invadido por pessoas que estão fraudando a declaração de gênero”, revela Sandra Leah. A situação também é confirmada por Isabela Corby, da Assessoria Popular Maria Felipa, que cobra o debate de novas regras para evitar fraudes. “É um enfrentamento necessário essa questão da autodeclaração da bisexualidade, mas ainda não temos resposta para essa encruzilhada. O governo precisa sentar na mesa e debater”, pontua.
Situação é reflexo da falta de estrutura
Para a antropóloga e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, Vanessa Sander, as irregularidades denunciadas pela população são reflexo de uma série de constantes violações de direitos básicos e falta de estrutura em todo o sistema penitenciário. “A ala para pessoas LGBTQIAPN+ foi criada para garantir direitos. Mas, ao longo dos anos, se tornou uma política em crise, isso porque cada vez mais presos começaram a se declarar LGBT para fugir da superlotação e conflitos em outras unidades”, afirma.
A especialista explica que o problema também é reflexo de uma solução única adotada pelo Estado para tentar solucionar todas as falhas do sistema prisional. “Todas as questões geradas pela criminalização e encarceramento de populações específicas têm sido resolvidas com mais e mais prisão. A ala superlota e a solução é produzir mais prisão. A ala LGBT é um exemplo dessa política dramática”, avalia.
A pesquisadora avalia que é necessário repensar a política de encarceramento. “Na ala LGBT eu destaco a necessidade de pensar em medidas de descriminalização, a maior está presa por porte de quantidade pequena de droga. Tudo isso porque os impactos sociais que uma prisão tem na vida de uma pessoa torna urgente repensar a política de encarceramento em massa. É comum ouvir que as prisões são a faculdade do crime. A reincidência criminal tem a ver com isso, então é preciso pensar novas maneiras de penalizar que não seja encarceramento, políticas de atenção laboral e no fortalecimento da rede de saúde mental”, cobra.
Projeto de Lei tenta viabilizar direitos
A falta de espaços adequados às pessoas LGBTQIANP+ privadas de liberdade já virou tema de um Projeto de Lei Complementar. Levantamento feito pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), entre 2022 e 2023, mostra que em todo o país 12.356 pessoas LGBTI – a Senappen usa a sigla que representa lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais – estavam encarceradas.
Minas é o segundo Estado com mais pessoas LGBTI encarceradas, atrás apenas de São Paulo, que tem sob tutela 52,8% do total de presos LGBTI no país, cerca de 6,4 mil pessoas. Em terceiro lugar aparece o Rio de Janeiro (579), seguido por Pernambuco (562) e Espírito Santo (501). Conforme o Senappen, das 1.388 casas prisionais com celas físicas em todo o país, 80,4% (1.117) não possuem espaço especial para essa população. Com isso, muitos detentos acabam encarcerados em celas comuns ou distantes de casa – o que contraria um dos princípios da Lei de Execução Penal, a manutenção de vínculos familiares.
Para alterar essa realidade, o PL 150/2021 propõe alterar a lei que criou o Fundo Penitenciário Nacional para viabilizar a construção ou adaptação de alas prisionais em quantidades apropriadas, que atendam a essa população. De acordo com o projeto, será considerada a autodeclaração de gênero.
O texto também propõe a capacitação continuada dos profissionais do sistema prisional e o condicionamento dos repasses de recursos aos estados e municípios conforme apresentação de relatório anual de atividades de combate à discriminação. O texto foi aprovado no Senado em maio deste ano, por 62 votos a favor e dois contrários, e encaminhado para a Câmara de Deputados onde está em análise.
O que diz a Sejusp?
Sobre as fraudes de autodeclaração de gênero, a Sejusp disse, em nota, que quando identificados, em observância ao princípio da autodeterminação, os casos são apurados administrativamente e esses custodiados são desligados dos espaços específicos. Ainda, quanto a supostos abusos por parte de custodiados, a pasta afirmou que quando identificados - seja pelos servidores, reportados pelo(a) custodiado(a) ou terceiros - são adotados os trâmites institucionais de apuração e responsabilização administrativa e criminal, quando for o caso.
Quanto a possíveis situações de “preconceito e violação do nome social”, a secretaria afirma que qualquer situação que extrapole os preceitos normalizados de conduta dos servidores que atuam na área são apurados quando devidamente registrados.
A Sejusp destaca ainda que possui o Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), que tem como objetivo principal propiciar o acesso a direitos e promover condições para a inclusão social de homens e mulheres egressos do sistema prisional. Para isso, busca identificar e intervir nas vulnerabilidades e riscos sociais que perpassam a trajetória de vida daqueles que tiveram sua liberdade privada. O Programa realiza um acompanhamento qualificado do público atendido, possibilitando o acesso a direitos sociais e aos direitos assegurados na Lei de Execução Penal, para contribuir, a partir disso, para a diminuição da reincidência criminal.