O Terceiro Comando Puro (TCP), facção evangélica do Cabana do Pai Tomás alvo de megaoperação nesta quarta-feira (27 de novembro), surgiu no início dos anos 2000, após uma dissidência do antigo Terceiro Comando (TC), uma facção ativa durante a década de 1990. Naquela época, o TC mantinha uma aliança com a facção Amigos dos Amigos (ADA), parceria que durou até 2002. Nesse ano, uma rebelião liderada por Fernandinho Beira-Mar, do Comando Vermelho (CV), resultou na morte de líderes do TC e na sobrevivência de um membro da ADA. A suspeita de traição foi o que motivou a adição do “P” de “Puro” ao nome, indicando que a facção passaria a contar apenas com criminosos “sem mistura”, ou seja, que só prestam serviços ao TCP.
Christina Vital da Cunha, professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de Oração de Traficante: Uma Etnografia, conta que, no contexto do surgimento do TCP, o líder do tráfico no Complexo de Acari, a quem ela chama de “Jeremias” em seu livro, se converteu a uma igreja evangélica bastante influente na época.
“O pastor líder dessa igreja realizava várias missões em presídios, convertendo diversas lideranças do tráfico de favelas no Rio de Janeiro, de diferentes facções. Durante um período, ele atuou como mediador nos chamados ‘tribunais’, implementando uma política de redução de danos para salvar vidas por meio da conversão. Foi nesse ambiente que o TCP se formou”, explica a pesquisadora. O mesmo líder religioso, no entanto, foi alvo de investigações devido a acusações de estupros de menores e o assassinato de uma delas.
Atualmente, algumas lideranças do TCP fundaram o “Complexo de Israel”, um agrupamento de cinco favelas dominadas pelo traficante conhecido como “Peixão”. Assim como na Cabana do Pai Tomás, bandeiras de Israel foram erguidas e estrelas de Davi foram pichadas em muros de diversos pontos, inclusive no topo de uma grande caixa d’água.
Ludmila Ribeiro, pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ressalta que a relação entre as igrejas neopentecostais e o sistema prisional foi negligenciada pelas autoridades, mas teve grande influência no cenário criminal.
“Essa relação é quase uma parceria perfeita. Temos uma igreja que ensina que o que importa são as boas ações aqui na Terra, sem a necessidade de respeitar o Estado, mas sim os irmãos. Diferente da religião católica, que valoriza as dificuldades impostas por Deus, as igrejas neopentecostais seguem uma lógica de disciplina. O reino dos céus é aqui na Terra, e a disciplina é essencial para acumular riquezas, o que é visto como um sinal de bom trabalho. Para eles (TCP), a única questão é a legalidade do comércio, mas, se a lei mudar, será apenas um trabalho como qualquer outro”, destaca a pesquisadora mineira.
Quanto ao significado dos símbolos religiosos no tráfico, Christina observa que, embora o uso de bandeiras e símbolos religiosos possa parecer algo novo em Minas Gerais, esse tipo de prática já era comum no Rio de Janeiro. Antigamente, imagens de santos católicos, como Nossa Senhora, e de figuras das religiões afro-brasileiras, como Ogum, além de São Cosme e Damião, eram usadas nas paredes de favelas para demarcar território de diferentes facções.
“A presença de mensagens bíblicas é bastante comum nas favelas controladas pelo TCP, especialmente nas do ‘Complexo de Israel’. Ali, projetos gráficos significativos reforçam a tentativa de criar uma representação de poder, associada à força e à fé religiosa, com um imaginário bíblico que valoriza a figura judaica”, explica Christina.
A facção também reinterpretou os símbolos religiosos, associando-os à dimensão bélica do Estado de Israel. “Israel é visto como um povo da promessa. Alguns evangélicos dessas favelas reforçam a ideia de força e luta ligada a Israel, enquanto outros acreditam que a terra prometida é um bem para todos que acreditam nesse Deus, não apenas para o povo judeu”, completa.
Nos comentários de uma página no Instagram ligada à facção, que divulga bailes funk na comunidade, um morador questionou o uso da bandeira de Israel. A resposta que recebeu focou mais na perspectiva bélica do que religiosa: “Israel já enfrentou três países ao mesmo tempo e venceu. Tudo certo prevalece!”