CRIME ORGANIZADO

Estabelecimento de facção evangélica no Cabana liga alerta para possível guerra com o CV em BH

Com lema religioso, versículos da Bíblia e bandeiras de Israel, Terceiro Comando Puro (TCP) marca seu território no bairro da região Oeste da capital

Por O TEMPO
Publicado em 27 de maio de 2024 | 06:00 - Atualizado em 27 de maio de 2024 | 09:58
 
 
 

“Jesus é o dono do lugar”. A frase, em um primeiro momento, pode parecer apenas uma citação religiosa, porém, na comunidade do Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte, o significado é outro. A inscrição, ao lado de salmos bíblicos e do símbolo da estrela de Davi, sempre com as cores azul e branco, da bandeira de Israel, são marcações de que, ali, quem comanda o crime é o Terceiro Comando Puro (TCP), facção evangélica do Rio de Janeiro aliada do PCC e inimiga do Comando Vermelho (CV). O estabelecimento da organização criminosa na região acende um alerta para possíveis conflitos violentos com outras comunidades ligadas à principal rival, uma delas localizada a menos de 250 metros da área onde o chamado “narcopentecostalismo” “tomou conta” na capital. 

Não é somente nas paredes da região que o símbolo judaico está escancarado. A estrela de Davi também aparece nas redes sociais, em que uma página chamada “Bailes do Cabana” faz anúncios de festas e apresenta, na foto de perfil, a bandeira de Israel ao fundo de uma figura de um cachorro pit-bull, uma referência ao ponto conhecido como “Pracinha dos Cachorros”. Nas postagens, o slogan “Tudo Certo Prevalece”, que também é referência à sigla da facção carioca, está sempre presente. A página chegou inclusive a ser utilizada para cobrar “gratidão” dos moradores da comunidade. 

“Na favela do TC (Terceiro Comando), em primeiro lugar vem o morador. Os moradores da comunidade têm que entender que quem faz as coisas são os bandidos. Que dia vocês viram a prefeitura fazer festa para as crianças? O mínimo que todos nós temos que ter é gratidão por quem está por nós”, escreveu um dos administradores da página em uma postagem nos stories. Apesar de impressionar pela audácia, para os moradores, a principal mudança sentida está na imposição do respeito por um suposto carisma, e não pela violência. 

“Nos anos 2000, o Cabana teve muitas guerras, os moradores não podiam andar no quarteirão de casa, pois cada rua tinha uma facção. Com a chegada do TCP, isso mudou, porque é uma dominação carismática. Por ser uma comunidade extremamente vulnerável, com uma grande ausência de políticas públicas, as pessoas são muito carentes. São jovens que, historicamente, são rejeitados pelo Estado, pela escola, pelo sistema. E esse grupo acolhe eles, né? É uma camisa para vestir, um lema para seguir; com fundamentos que não propagam a violência. O lema é ‘Jesus é o dono do lugar’, quem vai discordar de Jesus Cristo?”, pondera um morador de 36 anos, nascido e criado no aglomerado. 

Em janeiro de 2024, a Polícia Militar (PM) fez uma operação no Cabana do Pai Tomás sob a alegação de que pretendiam “impedir” o estabelecimento da facção carioca no aglomerado. Entretanto, uma busca rápida no Google Street View possibilitou o encontro de imagens com as pichações religiosas pelo menos desde 2021. Porém, conforme o morador do bairro, mesmo que a consolidação da força da facção seja mais percebida agora, a entrada aconteceu ainda em 2020, no auge da pandemia.

“Na Páscoa daquele ano, a facção distribuiu mais de 3.000 caixas de bombom com a bandeira de Israel. Foram mais de três caminhões de botijão de gás distribuídos de lá para cá, milhares de cestas básicas durante a pandemia. Em 2022, no aniversário do principal chefe da facção, teve show com um cantor evangélico de renome nacional, trenzinho da alegria para as crianças. Onde existe uma grande vulnerabilidade, isso conta muito”, completa o homem. 

Um policial, que não será identificado, mas que já atuou na Delegacia de Homicídios da região Oeste, conta que a “conversão” ao TCP da facção conhecida como “Sala Vip” – que até então comandava o tráfico no Cabana – ocorreu depois que o líder do grupo, Rafael Carlos da Silva Ferreira, o Paraíba, de 34 anos, fugiu para o Rio de Janeiro, por conta da existência de mandados de prisão contra ele em Minas. 

“Antigamente, o Cabana tinha uma simpatia com o CV, mas, depois que o Paraíba se escondeu no Rio, ele se aliou à Amigos dos Amigos (ADA), que virou aliada do TCP. Ele ainda está escondido no Rio, pois é foragido desde 2017, com três mandados de prisão. Atualmente, ganhou a gerência do morro da Mineira, outra comunidade carioca”, detalha o agente. 

Comunidade vizinha tem ligação com o CV

Ainda conforme o policial civil ouvido por O TEMPO, o Comando Vermelho, facção rival do TCP, está mais próximo do que se pode imaginar. No bairro Vista Alegre, que fica a apenas 250 metros da Pracinha dos Cachorros – dominada pela facção evangélica –, o “chefe”, que é conhecido como “Marcelinho Pisca-Pisca”, é integrante do CV e, assim como Paraíba, estaria escondido no Rio de Janeiro, porém, na favela da Rocinha. 

“Entretanto, ele (Pisca-Pisca) perdeu força após entrar em conflito com o Dalmo e o Rael, que são os líderes de comunidades da Vila da Paz, em Contagem, e Joana D’Arc, na região do Barreiro. Essa migração de criminosos de vários Estados para comunidades cariocas é comum devido à dificuldade que as forças policiais têm para acessar aquelas comunidades e capturar os criminosos”, detalhou o agente de segurança. 

Apesar de, atualmente, não existir nenhuma “guerra” entre as comunidades de BH dominadas pelas facções rivais, o clima é de tensão. Inclusive, os sinais desses possíveis conflitos também podem ser vistos nos comentários das publicações da página dos bailes funk do Cabana. Nas últimas semanas, dezenas de perfis falsos fizeram comentários com emojis de bandeiras vermelhas e o escrito “TD2” (“Tudo dois”), que faz referência ao sinal de “V”, feito com dois dedos pelos integrantes do CV.

História do TCP 

O Terceiro Comando Puro (TCP) foi criado no início dos anos 2000, a partir da dissidência do antigo Terceiro Comando (TC), facção que atuou na década de 1990. Na época, havia uma aliança com a facção Amigos dos Amigos (ADA), parceria que durou até 2002, quando uma rebelião comandada por Fernandinho Beira-Mar, do CV, terminou com líderes do TC mortos e um detento, da ADA, vivo. A suspeita de traição levou à adição do “P”, de “Puro”, à sigla, apontando para a permanência apenas de criminosos “sem mistura”, ou seja, que só “prestam serviço” para o TC. 

Christina Vital da Cunha, professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro “Oração de Traficante: Uma Etnografia”, conta que, na época do surgimento do TCP, o chefe do tráfico no Complexo de Acari, chamado por ela em seu livro de “Jeremias”, se converteu a uma igreja evangélica muito conhecida na época. 

“O pastor líder dessa igreja fazia uma série de missões em presídios, convertendo inúmeras lideranças do tráfico de favelas no Rio de Janeiro, de diferentes facções. Durante algum tempo, esse líder religioso agiu como uma espécie de mediador nos chamados ‘tribunais’, fazendo uma política de redução de danos, na tentativa de salvar vidas mediante a conversão dessas pessoas. E foi nesse contexto que surgiu o TCP”, conta a pesquisadora do assunto. O mesmo líder religioso já foi investigado devido a acusações de supostos estupros de menores e assassinato de uma delas. 

Hoje, parte das lideranças do Terceiro Comando fundaram o chamado “Complexo de Israel”, um conjunto formado por cinco favelas na área comandada pelo traficante conhecido como “Peixão”. Assim como no Cabana do Pai Tomás, lá foram erguidas bandeiras de Israel e pichadas estrelas de Davi nos muros em diversos pontos, até mesmo no topo de uma imponente caixa d’água.

Pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ludmila Ribeiro destaca que essa relação entre as igrejas neopentecostais e as unidades prisionais acabou sendo desprezada pelas autoridades, mas teve grande influência na história criminal. 

“É quase um casamento perfeito. Temos uma igreja que vai te dizer que o que vale é a sua boa ação na terra, e isso não significa necessariamente respeitar o Estado, mas, sim, respeitar os irmãos. Ao contrário da religião católica, que vai colocar muito esta ideia de que Deus está o tempo todo te provando com situações difíceis e a que você precisa se sujeitar, a neopentecostal tem muito uma lógica da disciplina. O reino dos céus é aqui na terra, e você precisa ser um sujeito disciplinado para conseguir acumular, já que a acumulação não é um pecado, pelo contrário, a acumulação significa que você é um bom trabalhador, que você está multiplicando. Para eles (TCP), o problema é que existe uma lei que proíbe aquele comércio, mas, se a lei mudar, é um trabalho como qualquer outro”, pontua a pesquisadora mineira.

O que representam os símbolos religiosos para o tráfico? 

Apesar de chamar atenção pela “novidade” na capital mineira, segundo Christina, o uso de símbolos religiosos e bandeiras de países não é nada novo na história do crime do Rio de Janeiro, sendo que, no passado, imagens de santos católicos, incluindo Nossa Senhora, e de religiões afro-brasileiras, como Ogum e são Cosme e Damião, foram pintadas em muros de comunidades para “marcar território” de uma ou outra facção. 

“Essa presença significativa de mensagens bíblicas é muito abundante nas favelas do Terceiro Comando, em especial nessas favelas do ‘Complexo de Israel’, onde observamos projetos gráficos muito importantes. É uma expressão muito significativa em termos da tentativa de colagem de uma representação de Estado, uma representação de força e uma representação religiosa, referida ao imaginário bíblico cuja figura judaica, digamos assim, é importante”, explica.

Ainda conforme a professora da UFF, a facção também atribuiu outro sentido à simbologia, levando para o lado “bélico” do Estado de Israel. “É um povo que está marcado em certo imaginário como aquele ‘povo da promessa’. Então, parte dos evangélicos dessas favelas vai reforçar o imaginário de Israel ligado a essa força, ao combate e à luta. Mas outra parte desses evangélicos reconhece que a terra prometida, esse bem futuro, esse dever, não é exclusivo do povo judeu, mas de todo aquele que acredita nesse Deus”, completa Christina. 

Nos comentários da página no Instagram que é ligada à facção e que divulga os bailes funk da comunidade, um morador chegou a questionar o uso da bandeira de Israel, e a resposta recebida foi, justamente, no sentido mais bélico do que religioso. “É porque Israel já teve uma época em que precisou lutar com três países ao mesmo tempo e venceu. Tudo certo prevalece!”, dizia a resposta. 

No Rio, facção é marcada por intolerância religiosa 

Na linha histórica do TCP, é impossível ignorar a perseguição e os ataques a casas de religiões de matriz africana nas comunidades dominadas pela facção. Os primeiros registros da intolerância religiosa decorrente do surgimento do narcopentecostalismo no Rio de Janeiro ocorreram em 2006, depois que Fernandinho Guarabu, líder do tráfico no morro do Dendê, se converteu à igreja evangélica. No aglomerado de BH, os moradores ouvidos por O TEMPO relatam o temor de que, para além dos símbolos e pichações religiosas, a intolerância também seja “importada” pela facção. 

Apelidado de “Rei da Ilha”, Guarabu, o traficante conhecido por ter o nome “Jesus Cisto” tatuado no braço, morreu em 2019 durante uma ação da Tropa de Choque da PM do Rio. Na época considerado um dos homens mais procurados do Estado, a recompensa por informações de seu paradeiro chegou a R$ 30 mil pelo disque-denúncia. Antes de morrer, o criminoso se tornou o traficante que comandou por mais tempo uma comunidade na capital fluminense, com 15 anos de liderança. 

Foi em 2013 que o uso de roupas brancas e das chamadas guias – colares de contas usados pelos seguidores da umbanda – se tornou proibido na comunidade comandada pelo traficante. “Soldados” do TCP invadiram dezenas de terreiros, quebrando imagens das entidades e pichando frases evangélicas nas paredes dos templos. Os sacerdotes que não aceitavam as ordens impostas acabavam expulsos das comunidades. De lá para cá, a intolerância religiosa acabou se tornando prática comum nas comunidades do TCP, especialmente naquelas controladas por Peixão, que pertencem ao chamado “Complexo de Israel”, formado por cinco favelas. Um retrato que ainda não é visto em Belo Horizonte. 

Sem citar nomes das lideranças da facção, a pesquisadora Christina Vital da Cunha, professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro “Oração de Traficante: Uma Etnografia”, pontua que esse preconceito religioso é um fenômeno que tem demonstrado ser difícil de combater no Rio de Janeiro. “Isso se soma à intolerância que já estava nas favelas em relação aos moradores praticantes de religiões de matriz afro-brasileira. É um fenômeno que reúne camadas de violência e de dificuldade no seu combate, tanto do ponto de vista do recurso que os moradores têm, de se interpor a esse tipo de violência, quanto do próprio Estado, no combate a essa violência e na responsabilização dos atores”, pondera. 

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