Enquanto segue crescendo o número de assinaturas em apoio à carta aberta de mulheres da Polícia Rodoviária Federal (PRF) cobrando mudanças nas políticas de combate aos assédios moral e sexual na corporação, a reportagem de O TEMPO teve acesso a novas denúncias contra os órgãos corretores da PRF de todo o Brasil. Os relatos, que incluem perseguições por meio de processos abertos pelos corregedores e punições consideradas “brandas” para homens acusados de crimes sexuais, fazem parte de uma notícia de fato enviada ao Ministério Público Federal (MPF), que arquivou o pedido de apuração em abril deste ano.
A reportagem teve acesso ao documento, que foi encaminhado ao MPF em outubro de 2023 por algumas mulheres, policiais e servidoras civis que trabalham ou trabalharam na PRF. O documento acabou arquivado por uma procuradora da República em abril de 2024. Em junho, O TEMPO expôs o caso de um policial rodoviário federal de Minas Gerais que, após ser acusado de assédio sexual e moral por seis mulheres, acabou inocentado pela Corregedoria e usou o processo interno para processar parte de suas vítimas na Justiça comum.
Assim como no caso de Minas, o assédio sexual também foi tema recorrente nas novas denúncias encaminhadas ao MPF. Em um dos relatos, uma policial, com apenas um mês de corporação, contou ter sofrido diversos assédios por parte de um colega, com mais de 20 anos de polícia, na unidade da cidade de Corumbá (MS). Orientada a não denunciar, sob o argumento de que não “daria em nada” e de que ela poderia acabar “punida e processada” se não conseguisse provar, ela adiou a denúncia até que, um dia, o acusado teria a “encoxado” na frente de outro policial.
Diante da nova situação, a mulher resolveu formalizar a denúncia à Corregedoria. Porém, o suspeito teve acesso aos detalhes do processo durante a investigação preliminar. A partir daí, segundo o relato da policial, o suspeito teria começado a intimidar o colega que testemunhou o crime, para que ele não fizesse o depoimento. Outro ponto denunciado na notícia de fato foi que, durante a colheita do relato da vítima, a Corregedoria teria chegado a ocultar a fala da mulher de que ela teria “se sentido estuprada” pelo acusado. Apesar disso, o processo interno concluiu por uma punição de 12 dias de suspensão. O tempo de punição, porém, acabou reduzido pela metade a pedido do superior hierárquico do acusado.
Enquanto o acusado de importunação sexual, crime passível de até cinco anos de prisão, ficou seis dias fora do trabalho, em outro processo, na Corregedoria da PRF do Rio Grande do Norte, a policial rodoviária federal Beatriz Oliveira da Costa, de 43 anos, foi expulsa da corporação após nove anos de polícia. Sua exclusão da PRF ocorreu por, entre outras coisas, ela consultar e incluir na lista de veículos suspeitos a placa do veículo de um vizinho que ela acreditava que poderia ser um traficante, por conta das festas que ele promovia. A história também consta no material enviado ao MPF.
Segundo o relato da policial, a punição máxima recebida por ela seria fruto de uma “perseguição”, por meio de processos internos abertos na Corregedoria, depois de ter contestado ordens recebidas durante a pandemia. Na época, houve a orientação de que fossem mantidas as abordagens aos veículos, o que expunha os policiais e violava seus direitos nos momentos iniciais da emergência de saúde, quando se sabia muito pouco sobre a doença.
“Não existe vedação para consultar placa pelo sistema, não é proibido um policial, na sua casa, fazer uma consulta de uma placa. Eu nunca ouvi falar nisso. Em nove anos na PRF, nem eu, nem ninguém nunca ouviu falar de policial sendo demitido por esse motivo (consultar placa). Inclusive, há um caso de um policial em Brasília que fez mais de cem consultas aos próprios colegas e que, para ele, foi oferecido Termo de Ajustamento de Conduta (TAC); no meu caso, foi demissão. Mas eu fui demitida por retaliação de uma pessoa, um homem da Corregedoria do meu Estado que vem me perseguindo após uma denúncia que fiz na Corregedoria Nacional”, detalha a policial.
Ainda no Nordeste, desta vez em Pernambuco, uma engenheira civil terceirizada pela PRF também denunciou um policial por assédio sexual e moral. Em seu relato, a vítima, que trabalhou por seis anos na unidade, detalha uma série de situações, que incluem um homem trocando de roupa em uma sala sem porta, ficando só de cueca na frente dela, e fazendo inúmeros comentários sexuais. Em um dos ocorridos denunciados pela mulher, o acusado teria perguntado se ela estaria “assada” após uma infecção intestinal e, em outro dia, afirmado, na frente de outras pessoas, que saberia o tamanho do silicone e da calça da mulher.
Além disso, a servidora civil fez diversos relatos de assédio moral contra estagiários e outros servidores civis. Em uma das ocasiões narradas por ela, o policial teria chegado a tirar a arma do coldre e colocado na cintura, de forma visível aos trabalhadores, como forma de intimidação. O ato ocorreu enquanto ele dizia que “quem mandava naquela p… era ele”.
Depois de todo o relato da situação ser levado à Corregedoria, o caso ainda é analisado. Entretanto, logo após a denúncia, a servidora acabou sendo removida da sala, passando a trabalhar em um anexo distante, o que fez com que ela se sentisse, de certa forma, punida. Ainda conforme o relato feito ao MPF, desde então, a engenheira passou a sofrer de problemas psiquiátricos e a fazer uso de medicamentos controlados e, após meses afastada, acabou demitida da empresa terceirizada. Enquanto isso, o policial denunciado por ela segue trabalhando normalmente na unidade da PRF.
Perseguições
O último dos casos denunciados pelas mulheres ao MPF envolve uma policial com 20 anos de PRF, que, inclusive, chegou a atuar na própria Corregedoria geral da corporação, em Brasília. Na notícia de fato, ela denuncia ter sofrido inúmeras perseguições – por meio de apurações internas instauradas pela Corregedoria – depois de contestar o resultado da investigação movida contra um policial, que teria sido autor de assédio e stalking (perseguição) contra ela.
Conforme o relato na notícia de fato, foi provado que o homem teria consultado centenas de vezes os dados dela no sistema da polícia e, também, no Tribunal de Justiça. A suspeita da vítima é que o autor tenha usado os resultados da busca para se munir de informações para ameaçá-la. Ela chegou a receber por e-mail um processo em nome dela.
Após a conclusão do procedimento interno, que foi arquivado pela Corregedoria após a assinatura de um TAC, a mulher entrou com recursos, apontando o que ela considera serem falhas no processo da Corregedoria. Um exemplo citado por ela é a oitiva de testemunhas supostamente favoráveis ao acusado, enquanto as pessoas indicadas por ela teriam sido ignoradas pela comissão. Foi a partir desses questionamentos que a policial acabou tendo quatro processos administrativos diferentes abertos contra ela, a mando da Corregedoria Geral.
MPF não se posicionou
Questionada sobre o motivo do arquivamento da ação desde o dia 14 de junho pela reportagem de O TEMPO, até a publicação da matéria, a assessoria de imprensa do MPF ainda não havia se posicionado.
Na demanda enviada, era questionado o motivo do arquivamento das denúncias, se este poderia ser revertido após a carta aberta das mulheres da PRF, entre outros pontos. O espaço está aberto para a publicação do posicionamento do órgão assim que for recebido.
Já a PRF informou, por nota, que encaminhou resposta ao MPF sobre a notícia de fato no dia 8 de dezembro de 2023. Segundo a corporação, foram entregues informações relativas aos casos citados, mas, até a presente data, nova manifestação não foi recebida do MPF.
“A PRF não compactua com desvios de conduta de qualquer natureza por parte de seus servidores, sendo todas as denúncias apuradas e punidas com o rigor da lei e o respeito ao direito de defesa. A PRF dá apoio incontestável à proteção dos direitos humanos de seus servidores e da sociedade, sendo referência nacional do combate à exploração sexual de crianças e adolescentes com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e o reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU)”, conclui o texto.