Até 2016, as senadoras do Brasil não tinham um banheiro feminino no plenário, algo com que os homens contavam desde a inauguração do Congresso Federal, em 1960. Apesar da “vitória” das senadoras, passados oito anos, em 2024 o direito ao uso de um banheiro feminino continua sendo uma luta das mulheres, desta vez, entre as servidoras da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O TEMPO teve acesso a um ofício encaminhado ao diretor geral da corporação para cobrar que os policiais homens respeitassem os espaços que deveriam ser exclusivos delas. 

A reportagem foi procurada por policiais e servidoras civis da PRF de todo o Brasil após a publicação, em junho deste ano, de matérias em O TEMPO sobre uma carta aberta das mulheres da corporação que cobra mudanças nas políticas de combate aos assédios sexual e moral. O movimento teve início depois que um inspetor da PRF em Minas foi denunciado por seis mulheres e acabou inocentado pela Corregedoria. 

No documento obtido pela reportagem, assinado no dia 27 de junho de 2023 pelo Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais no Distrito Federal (SINPRF-DF), é apresentado um abaixo-assinado feito pelas servidoras da corporação, no qual elas cobram “providências” e medidas para o “enfrentamento da discriminação e assédio contra mulheres no ambiente de trabalho”. 

Entre as reivindicações das mulheres, estavam a disponibilização de “banheiros e alojamentos equipados, separados por sexo, em todas as unidades da PRF”; de modo a “determinar e fazer cumprir a utilização” desses espaços só pelas mulheres; a implantação de câmeras ou controle de acesso digital para garantir o cumprimento da exclusividade; a implementação de medidas educativas; entre outras.

Além do ofício endereçado ao diretor geral, as servidoras da PRF enviaram, em outubro de 2023, uma notícia de fato ao Ministério Público Federal (MPF). No documento, que acabou arquivado pelo órgão de Justiça, elas também fizeram reclamações sobre os banheiros e alojamentos femininos. No documento, foram anexadas fotografias que mostram a diferença do banheiro masculino para o feminino, além de diversos relatos de mulheres que afirmam terem sido vítimas de assédio sexual e moral dentro da corporação. Para arquivar as denúncias, o MPF argumentou que os fatos narrados não configuram “lesão ou ameaça de lesão aos interesses ou direitos tutelados” pelo órgão. 

Enquanto no espaço dos homens existe um box de vidro, no banheiro das mulheres, o espaço que deveria ser usado para o banho serve de uma espécie de depósito de produtos de limpeza. Segundo a reclamação das servidoras, entre os problemas encontrados, para além do uso inadequado pelos homens, estão sujeira e desmantelo com móveis.

“Essas evidências não podem ser ignoradas pela administração, sistema sindical, bem como pela maioria das colegas, que respeitam esses espaços. É preciso considerar a necessidade de conscientização, revisão de normas (se necessário), fiscalização ou qualquer outro mecanismo eficiente que garanta o respeito ao espaço de uso exclusivo”, completa o documento. 

Procurada por O TEMPO por mais de dez dias, a assessoria de imprensa do MPF não se posicionou sobre o motivo do arquivamento da notícia de fato encaminhada pelas mulheres. 

Mulheres ouvidas denunciam que problema é “sistêmico”

Segundo mulheres que atuam em unidades da corporação em todas as regiões do Brasil ouvidas pela reportagem de O TEMPO, o problema não seria exclusivo a um ou outro Estado. “São problemas sistêmicos. Até temos banheiro e alojamento femininos, só que os homens usam, alegando que só tem uma mulher e, por isso, eles podem usar. E essa situação acaba empurrando as mulheres a aceitar, pois imagine: você está trabalhando com cinco pessoas na equipe. Você é a única mulher, e colegas chegam e falam que, como só tem você, eles vão usar o banheiro feminino”, conta a mulher, que não será identificada. 

Em 2024, a PRF contava com 12.983 homens em seu quadro e apenas 1.428 mulheres, sendo que elas representam pouco menos de 11% do total de trabalhadores. Em outros relatos, as servidoras da PRF denunciam até mesmo o caso de uma policial que, ao entrar no alojamento feminino para fazer o intervalo, foi surpreendida pela presença de um policial que estaria se masturbando no espaço, que deveria ser exclusivo das mulheres. 

Questionada sobre o que teria sido feito pela corporação para atender às demandas das mulheres apresentadas no ofício, a assessoria de imprensa da PRF informou, por nota, que foi determinada a publicação de “cards informativos” sobre a destinação dos espaços exclusivos para as servidoras por meio de sua “comunicação interna”, o que teria ocorrido em maio e junho de 2023. “Além de ofício-circular do diretor geral, datado de 30 de junho de 2023, que reforça a necessidade de respeito e educação quanto ao uso do banheiro feminino de uso exclusivo para o público feminino”, disse.

A PRF afirmou ainda que está “alinhada à ética, ao respeito, à transferência e à responsabilidade”, trabalhando para melhorar o ambiente de trabalho dos colaboradores, “o que inclui a implementação de banheiros e alojamentos exclusivos para policiais rodoviárias federais”.

Denúncias serão levadas à ONU

Segundo a Associação Nacional das Mulheres Policiais do Brasil (Ampol), um documento com denúncias de mulheres policiais de problemas envolvendo os assédios morais e sexuais na PRF está sendo preparado. O objetivo é que ele seja entregue em breve à Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres. “O objetivo é estabelecer um canal ou um observatório dessa situação em relação à prática de violência contra a mulher policial, nas suas várias modalidades de manifestação, como assédio moral, assédio sexual e outras condutas delitivas”, disse Creusa Camelier, presidente entidade. 

Segundo ela, “praticamente inexiste” instrumentalidade legal para apurar denúncias de assédio sexual e do crime de stalking dentro das polícias. Apesar de a lei prever o assédio moral como falta disciplinar punível com advertência ou demissão, aponta a presidente, o assédio sexual no ambiente do trabalho não é sequer citado na legislação. 

“No momento, devido ao considerável número de notícias sobre denúncias de violência contra a mulher policial praticada no ambiente de trabalho, a Ampol, por intermédio de uma portaria, está instituindo a Comissão de Direitos, Prerrogativas e Atendimento à Mulher Policial, para dar um maior amparo à vítima. Assim que a associação receber uma comunicação sobre essas ocorrências, além de orientar a associada, encaminhará uma comunicação ao diretor do órgão policial de origem da denunciante, a fim de reforçar a comunicação do fato pela vítima à Corregedoria da instituição”, concluiu Creusa.