Há seis anos, a saúde de toda uma comunidade se esvaiu com o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte. A lama levou os sonhos das 272 pessoas que morreram na tragédia e afetou a vida de moradores de Brumadinho e das proximidades do rio Paraopeba até Três Marias, na região Central de Minas Gerais. Em meio à luta para restabelecer a vida, o iminente fim de uma indenização paga mensalmente a 154.964 atingidos desde o trágico 25 de janeiro de 2019 é mais uma angústia.

A partir de março, o valor do auxílio para adultos será reduzido pela metade. O benefício, inicialmente chamado de auxílio emergencial, passou a ser conhecido, no fim de 2021, como Programa de Transferência de Renda (PTR), após o acordo da Vale com o governo de Minas Gerais e instituições de Justiça — Ministério Público e Defensoria Pública.

Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), que administra os recursos depositados pela mineradora, a redução ocorre para preparar os beneficiários para o fim do auxílio, previsto para março de 2026. Atualmente, o valor repassado mensalmente é de meio salário-mínimo por adulto, com exceção à zona quente, a região mais próxima à barragem, cujo pagamento é de um salário mínimo. A partir de março, o valor será reduzido pela metade. Não haverá corte para adolescentes e crianças, que seguirão recebendo 1/4 e 1/8 do salário-mínimo, respectivamente.

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Dados dimensionam o impacto do fim do auxílio para a economia local. Menos de quatro meses do benefício somados representam o orçamento inteiro da Prefeitura de Brumadinho para 2025, orçado em R$ 500 milhões. Por mês, o PTR transfere R$ 145,9 milhões para os atingidos. Desse total, cerca de R$ 50 milhões correspondem apenas a moradores de Brumadinho. Isso porque também recebem quem mora a até 100 metros do rio Paraopeba nas cidades até Três Marias. 

“Por um lado, vemos a força do PTR como motor da economia local e, por outro lado, a preocupação que as pessoas atingidas externam”, afirma o gerente da FGV André Andrade. Ele reforça que a “fundação reconhece os efeitos” do fim do auxílio. “Será uma perda radical de renda. Uma população vai se ver desprovida dos recursos que hoje abastecem e alimentam, em especial as pessoas mais carentes, para quem esse dinheiro faz diferença no dia a dia”, declara.

Lembrança diária

As lembranças do dia 25 de janeiro de 2019 são visitas frequentes para João Paulo Braga, de 44 anos. Morador do Parque da Cachoeira, comunidade mais atingida pelo rompimento da barragem, ele se lembra com clareza do desespero. “Foi um cenário de guerra. Gente correndo. Helicópteros voando, procurando corpos”, diz. Da janela de casa, ele consegue ver as marcas da lama e o trabalho de limpeza da Vale. Para ele, essas são provas de que a reparação não foi concluída e o auxílio não deveria ser finalizado.


Comunidade do Parque da Cachoeira foi a mais afetada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho - Foto: Arquivo Pessoal

“Ficamos iludidos com as melhorias que prometeram, mas agora estamos vendo que não vão acontecer. Penso até em ir embora. Todo dia, da minha varanda, eu olho e lembro da tragédia”, diz.

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“Se acabar esse auxílio, não sei o que será da gente. Essa renda vai fazer muita falta para Brumadinho. Se acabar, vai dar um tumulto. As coisas na cidade estão muito caras. Tem gente que conta com esse dinheiro porque não consegue trabalhar. Usa o recurso para comprar remédios. Eu mesmo tomo remédio de tarja preta desde a tragédia”, acrescenta.

A linha férrea, por onde o minério é transportado, e o rio Paraopeba, afetado pelo rompimento da barragem da Vale, delimitam o bairro São Conrado, onde Valéria da Silva Oliveira, de 53 anos, vive com os três filhos e o marido. “A mineração sempre fez parte da minha vida, mesmo sem eu ser parte dela”, afirma.

Agora, enquanto ainda lida com a dor dos que se foram na tragédia, ela cita a aflição pela mudança no orçamento. “O corte vai mudar muito nossa vida. Era um dinheiro que veio de uma tragédia, mas que era um amparo para todos os moradores”, diz. 

Movimento de atingidos vê fim do auxílio como ilegal

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o fim do auxílio viola a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Pnab). Entre os pontos, a legislação, sancionada em dezembro de 2023, assegura que as comunidades atingidas por acidentes ou desastres têm direito a auxílio que “assegure a manutenção dos níveis de vida até que as famílias alcancem condições pelo menos equivalentes às precedentes”.

“Esse não é o caso de Brumadinho porque não saíram todas as indenizações individuais. A indenização coletiva também não andou”, argumenta. Segundo dados divulgados pela própria Vale, mais de 17 mil pessoas foram indenizadas nas esferas cível e trabalhista, totalizando mais de R$ 3,8 bilhões. Na visão do MAB, como existem 155 mil pessoas cadastradas no PTR, apenas 11% dos atingidos foram reparados.

Ansiedade generalizada

O fim do programa gera preocupações sobre a saúde das famílias atingidas. Além da diminuição do poder de compra, a Organização Mundial da Saúde expande o conceito de saúde para além de estar livre de uma enfermidade. Ele envolve, segundo a entidade global, “um estado completo de bem-estar físico, mental e social”.

Ao explicar a importância de uma reparação financeira para pessoas com a saúde debilitada a partir de uma tragédia, a psicóloga Renata Borja recorre à pirâmide de Maslow, teoria desenvolvida pelo psicólogo Abraham Maslow que organiza as necessidades humanas em hierarquia. “Na base, temos as necessidades fisiológicas: dormir, comer, beber. No degrau acima está a segurança. E o dinheiro te dá segurança. Ele é relevante, principalmente para as famílias de baixa renda”, explica.

Conforme a especialista, o cenário de retirada dessa segurança “vai gerar ansiedade na maioria das pessoas”. Um dado ilustra a necessidade de preocupação com essa análise. Estudo desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e divulgado em 2022 apontou alta prevalência de sintomas psiquiátricos entre os moradores de Brumadinho após o rompimento da barragem. Sintomas ansiosos eram o terceiro mais recorrente, com 18,9% dos casos, atrás de sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (22,9%) e de sintomas depressivos (29,3%).

Futuro pós-auxílio

Enquanto movimentos de pessoas atingidas mantêm as articulações para tentar garantir um novo repasse que dê sobrevida ao auxílio, a psicóloga traça formas para as famílias conseguirem lidar com a redução e posterior fim do benefício. “Essas pessoas podem começar a criar estratégias para manter os ganhos e vencer as dificuldades que virão com essa falta de recurso. A ansiedade e o medo são necessários para criarmos recursos de enfrentamento para que possamos sobreviver.”

Segundo o gerente da FGV, o momento é de “preparar a economia e as pessoas para esse momento de vida diferente”. Uma das frentes de atuação, segundo explica, será transformar os postos de atendimento aos atingidos em pontos de educação financeira. “Vamos falar sobre como poupar e tratar de assuntos como jogos de azar, que hoje são responsáveis por corroer a renda de famílias mais pobres, tirando inclusive dinheiro de alimentação”, diz.

“A FGV está preocupada com o destino dessas populações. Somos solidários. Não é do desejo da Fundação que o programa se encerre, mas temos um limite de recursos para serem gastos, que vão se esgotar agora em 2026. Foram os recursos destinados a esse programa pelo acordo”, completou o gerente.

O que diz a Vale

Questionada sobre a preocupação dos movimentos de pessoas atingidas pelo rompimento com relação à aproximação do fim do PTR, Gleuza Jesué, diretora de Reparação da Vale, argumenta que, desde a assinatura do Acordo de Reparação, a empresa, que até então fazia o pagamento do auxílio emergencial, não tem mais responsabilidade sobre o programa, a cargo da FGV. “Nós não temos o que dizer, porque a gente não participa dessa discussão, a Vale nem acompanha e nem sabe o que está acontecendo dentro desse processo.”

Diretora de reparação da Vale, Gleusa Jesué - Foto: José Vítor Camilo / O TEMPO

Já sobre a afirmação do MAB de que só 10% das indenizações foram pagas, a diretora da Vale nega e garante que o processo deverá ser concluído ainda este ano. “O que posso atestar, pois nós temos todo o mapeamento das pessoas, é que estamos chegando na reta final. A nossa expectativa, inclusive, é que, em 2025, esse processo seja praticamente encerrado. As pessoas que querem assinar um acordo, seja judicial ou extrajudicial, nós estamos prontos para concluir”, disse Gleuza.