Quase uma década após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, na região Central de Minas, a reconstrução dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo está quase pronta, com 93% dos processos de reassentamento concluídos. Apesar do avanço, o Novo Bento ainda não é, para alguns, um símbolo de pertencimento. A nove quilômetros do antigo Bento, destruído pela lama em 5 de novembro de 2015, o distrito carrega a sensação de estar suspenso entre o que foi e o que ainda não se tornou. Há histórias que recomeçam, mas também vínculos que não se refizeram. A comunidade, que antes se reconhecia nas ruas estreitas e nas relações cotidianas, tenta construir uma identidade para o novo território, sem que a memória pese mais do que a rotina. Além de centenas de desabrigados, a tragédia deixou 19 mortos.
O término dos reassentamentos é uma das exigências do novo acordo de reparação, firmado há seis meses. A reportagem visitou o novo Bento Rodrigues a convite da Samarco, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton, quando foi apresentado um balanço dos reassentamentos: 376 obras construídas e 355 casas entregues. A viagem não contemplou a comunidade de Paracatu de Baixo. A projeção da mineradora é terminar todas as construções iniciadas antes do acordo até setembro. No dia da visita, a comunidade estava em luto. Muitos acompanhavam o enterro de Filomeno da Silva, de 92 anos, descrito como um homem religioso e que morreu sem conhecer o novo lar. A casa dele era uma das que estavam em processo de finalização para ser entregue.
Enquanto alguns ainda se adaptam ao novo lar, Darlisa das Graças, de 58 anos, é uma das residentes mais antigas do Novo Bento. Ela é proprietária do restaurante Bar da Una, nome que carrega desde quando ainda era um bar no antigo distrito. Apesar de ambientada ao novo local, ela fala com nostalgia do cotidiano do antigo Bento. “Era maravilhoso o movimento antes. Sinto falta, aquela comunidade pequena, mas todo mundo reunido. Era animal [nas ruas], as pessoas se encontravam na rua. Aqui, por enquanto, não está tendo (esse convívio)”, declara.
Darlisa das Graças administra o restaurante Bar da Una, no Novo Bento Rodrigues (Foto: Gabriel Rezende / O TEMPO)
Hoje, a maioria da clientela de Darlisa é formada por trabalhadores da mineração. “Moradores é vez ou outra. Nem vejo vizinho, praticamente”, diz. O que ela mais sente falta é da união entre as pessoas. “Eu gostaria que o pessoal se unisse mais. Mudou muito. Dez anos é muito tempo. Vamos ver se vai voltar a ser como antes. Depende da comunidade, da conclusão das obras.”
Para Rachel Staring, gerente-geral Social dos Reassentamentos, o novo Bento representa uma chance de recomeço. A comunidade conta com escola, posto de saúde, igrejas e outros estabelecimentos comerciais. Ao todo, 729 famílias se inscreveram no processo de reassentamento dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Destas, 676 já tiveram seus casos resolvidos, o que representa 93% de conclusão. Além dos que vivem ou aguardam as casas no novo distrito, parte dos atingidos optou por receber indenização em dinheiro e se estabelecer em outras localidades.
Em meio ao recomeço, o sentimento de Antônio Geraldo de Paula, de 69 anos, é de nostalgia. “Morei desde os 16 anos no antigo Bento. O processo é doloroso. Sinto falta demais. As pessoas já não se reconhecem mais. A gente tinha liberdade para andar para todo lado, você ia tranquilo. Estou sem rumo, às vezes sinto que não tenho cabeça. A gente veio para cá porque não tinha outro recurso”, disse.
Antônio Geraldo carrega nostalgia em relação ao antigo Bento Rodrigues (Foto: Gabriel Rezende / O TEMPO)
O novo acordo de reparação pela tragédia de Mariana prevê R$ 170 bilhões em ações. A construção do novo Bento Rodrigues foi iniciada pela Fundação Renova, que foi extinta com a assinatura do novo acordo, após críticas de ineficácia por parte de representantes dos atingidos. O acordo está dividido em dois grandes blocos: obrigações de fazer e obrigações de pagar. Os reassentamentos fazem parte das obrigações de fazer. Estão previstos R$ 32 bilhões em novos investimentos, que se somam aos R$ 38 bilhões já aplicados. Além disso, a Samarco deverá repassar R$ 100 bilhões ao poder público ao longo dos próximos 20 anos.
Atraso de meia década
O desafio de estabelecer uma nova rotina chega às famílias com mais de meia década de atraso. A previsão inicial era de que o novo Bento Rodrigues estivesse pronto em 2019. Mas, em meio a sucessivos adiamentos, as famílias passaram anos à espera do novo lar — tempo em que enfrentaram uma pandemia e acompanharam outra tragédia relacionada à mineração em Minas Gerais. As entregas começaram, gradualmente, apenas em 2023.
“O tempo não foi bom. Deveríamos ter feito o reassentamento mais rápido”, reconhece o presidente da Samarco, Rodrigo Vilela. Ele lista uma série de motivos para o atraso nas obras: a definição do local do reassentamento, que ocorreu em 2016; os processos de licenciamento ambiental; e a etapa de organização e distribuição das moradias.“O foco era manter o modo de vida. Para isso, a construção coletiva foi a base do processo decisório”, afirma. Segundo ele, também foi necessário respeitar o tempo de escolha das famílias para que cada uma pudesse personalizar a nova residência de acordo com suas preferências.
Independentemente dos motivos, o hiato de uma década pode explicar o distanciamento na comunidade, antes descrita como unida por Darlisa. Na tarde de terça-feira (27 de maio), dia em que a reportagem visitou a comunidade, duas crianças, de 9 e 4 anos, brincavam na rua sob o olhar atento da avó, Conceição, esposa de Antônio. “A criação mudou muito”, comenta ela. As meninas, tímidas, elogiam o lugar onde vivem há cerca de um ano, após deixarem uma casa alugada em Mariana.
Gostam da escola onde estudam, a Nova Escola Municipal de Bento Rodrigues, que recebeu uma fachada nova. Mas nada conhecem da fachada manchada de lama da antiga escola, atualmente coberta pela vegetação, onde muitas pessoas se reuniram após o rompimento da barragem de Fundão. O local, que antes era um ponto de referência e vida social para a comunidade, virou um símbolo da tragédia.
Escola Municipal de Bento Rodrigues foi ponto de encontro da comunidade após rompimento da barragem (Foto: Gabriel Rezende / O TEMPO)
Tragédia a não ser esquecida
Com a esperança de que a rotina se restabeleça, Darlisa não guarda fotos do antigo Bar da Una. Todos os registros e pertences foram levados pela lama no dia 5 de novembro de 2015, quando precisou sair de casa às pressas. “Foi uma tragédia. Eu abri a janela e percebi aquela gritaria. Foi só o tempo de abrir a porta e sair descalça”, relembra.
As referências ao rompimento da barragem de Fundão não permanecem apenas na memória dos moradores. Na sede da Samarco, há mensagens espalhadas pelos corredores que reforçam o compromisso de não esquecer o maior desastre ambiental da história do país. “Não tem um dia que não lembramos do que ocorreu”, afirma o presidente da empresa, Rodrigo Vilela.
Renova tem plano de retomar 100% da capacidade produtiva em 2028 (Foto: Gabriel Rezende / O TEMPO).
Segundo ele, os processos atuais da Samarco são guiados pelos aprendizados deixados pelo passado. O plano da empresa é retomar 100% da capacidade operacional até 2028, com produção estimada em 27 milhões de toneladas de pelotas de minério por ano e investimento previsto de R$ 13 bilhões. Atualmente, a mineradora opera com 60% da capacidade. Após a fase de expansão, devem ser abertas de 2 mil a 3 mil vagas para empregados próprios.
No atual modelo de operação, a empresa afirma não utilizar mais barragens. Cerca de 80% dos rejeitos gerados são empilhados a seco, por meio de um sistema de filtragem. Os 20% restantes ainda se apresentam em forma de lama, mas são depositados em cavas, e não mais em estruturas de contenção. A expectativa da empresa é reduzir ainda mais o volume de rejeitos úmidos. Além disso, aposta no Centro de Monitoramento e Inspeção (CMI) que opera 24 horas dia como forma de monitorar as estruturas.
Nenhuma estrutura é 100% segura
Apesar dos avanços técnicos citados, os riscos associados à mineração não podem ser eliminados — apenas controlados, analisa o engenheiro civil Carlos Barreira Martinez, professor da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ele, nenhuma estrutura construída pelo ser humano é totalmente segura. O que resta saber, é quando e de que forma o risco vai se manifestar.
“Toda estrutura humana será destruída em algum momento. Ao construir uma barragem de rejeitos, você está armazenando lama com água em uma área que precisa se estabilizar. Depois, passamos a empilhar esse rejeito a seco, formando montanhas com até 100 metros de altura. Mas, se essas pilhas não forem bem compactadas e controladas, também podem colapsar.” Como o que aconteceu em Conceição do Pará, na região Centro Oeste do Estado. No dia 7 de dezembro do último ano, uma pilha de rejeitos da mina de ouro Turmalina desmoronou na comunidade de Casquilho de Cima. Na ocasião, 255 pessoas tiveram que deixar suas casas.
“O problema aparece quando há excesso de material ou quando os métodos de contenção são mal executados”, acrescenta. Na avaliação do especialista, além da mudança no modo de acumular rejeitos, é necessário investir na fiscalização da qualidade da execução. “Os órgãos públicos de controle contam com bons profissionais, mas são poucos”, diz, reconhecendo que houve avanços no sistema de monitoramento das estruturas.
Barreira defende, ainda, a criação de um fundo público robusto voltado ao controle da atividade minerária, incluindo a fiscalização do que restará das minas quando os ciclos de exploração se encerrarem. Ele lembra que o minério de ferro é finito.“Estamos repetindo, em escala maior, o que já fizemos no ciclo do ouro”, conclui.