Eric, de 2 anos, cresce em uma cidade sem creche, Santa Rita de Ibitipoca, na Zona da Mata mineira, e, por oito horas, nos dias úteis, fica sob os cuidados de uma parente enquanto a mãe trabalha. Apesar de a Constituição Federal Brasileira garantir o acesso à creche como um dever do Estado, em Minas Gerais, 55 municípios não contam com creches públicas para crianças de 0 a 3 anos – sendo que, em 14 deles, há apenas oferta de vagas na rede privada –, conforme dados do último Censo Escolar da Educação Básica, de 2024, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Os impactos dessa realidade na vida dos mineiros são o assunto da série de reportagens “Acesso Negado”, que também vai discutir, a partir de hoje, os possíveis caminhos a serem seguidos para garantia plena de direitos das crianças no estado.
Com a ausência da creche, que poderia proporcionar a Eric o desenvolvimento da linguagem, do raciocínio lógico e da socialização, entre tantos outros benefícios, a preocupação com o atraso escolar do pequeno ibitipoquense parece pesar apenas sobre os ombros da mãe, Anne de Freitas Fonseca, de 32 anos. “Se tivesse a escolinha, seria muito melhor para ele. Meu filho estaria aprendendo, ia facilitar a vida”, desabafa.
"É um escândalo que a esfera pública não dê conta da sua obrigação, que é garantir o direito da criança à pré-escola e permitir que as mães conciliem a maternidade com a carreira”, pondera a pesquisadora da Fiocruz Minas e especialista em políticas públicas Elizabeth Fleury.
Ela avalia ainda que o problema pode ser maior do que a pesquisa do Inep conseguiu mensurar. Segundo a especialista, além das crianças que vivem em cidades sem creche, a demanda por vagas também afeta famílias que moram em áreas periféricas e enfrentam dificuldades para acessar o benefício. “É bem possível que o número de crianças desassistidas esteja subnotificado. Minas Gerais é um estado com mais de 800 municípios e, além de menos de 40% das crianças terem acesso às creches, é preciso conhecer, de fato, a real dimensão da demanda”, analisa. “As creches são uma estrutura do Estado. Nós pagamos impostos para que elas funcionem”, acrescenta.
A Associação Mineira de Municípios (AMM) reconhece o déficit na cobertura em Minas e defende a criação de um sistema para acompanhar a demanda por creches. “É preciso que os municípios montem um tipo de controle, ou que isso seja feito pelo governo estadual ou federal, por meio da sistematização desses dados”, afirma o coordenador técnico da AMM, Guilherme Levy. “Conhecer a demanda é o primeiro passo para planejar”, endossa.
LACUNA. Mesmo onde há creches públicas, faltam informações sobre a demanda real e as filas de espera, afirma a promotora Giselle de Oliveira, coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (CAO-Educ). “Entendemos que há um grave problema”, destaca a promotora. Ela concorda que a situação pode ser ainda mais grave do que mostram os números. “Em muitas cidades, as pessoas sequer sabem que têm esse direito. É dever do município buscar ativamente quem precisa de vaga em creche — e isso não tem acontecido”, pontua. Outro ponto preocupante, segundo Giselle, é a ausência de divulgação clara sobre a existência de vagas. “Em alguns municípios, os avisos ficam apenas afixados nas prefeituras. Não há ampla comunicação por rádio, redes sociais ou outros meios. Assim, apenas quem ouve por boca a boca fica sabendo. Isso é incompatível com os princípios de uma democracia”, critica.
É o caso, por exemplo, da despachante Ana Paula Villar, de 43 anos. Mãe de três filhos — Helena, de 2, Jefferson, de 4, e Emmanuel, de 10 —, ela não deveria ter dificuldades para acessar o direito à creche, uma vez que mora em Belo Horizonte, capital mineira com mais de 240 unidades. Pelo contrário, ela se habituou a requerer ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para conseguir vaga para os filhos. “O preço da creche privada hoje é astronômico. Mas, no público, é uma luta. Costuma estar tudo ocupado, demoram a te atender, e ainda tem que bater o horário da creche com o do trabalho. Tanto eu quanto minha irmã (também mãe) sabemos que, para conseguir, só pedindo intervenção do CRAS”, reclama.
Ana Paula relata que, após mudar recentemente a carga horária do trabalho, está em busca de uma vaga em creche para a filha mais nova, Helena, de 2 anos. Morando entre o bairro Caiçara e a favela Pedreira Prado Lopes, ela se prepara para lutar por um encaixe em uma unidade mais próxima de casa. “Como as vagas são distribuídas por região, às vezes, a escolinha que fica um pouco mais perto pertence a outra regional, e aí querem colocar minha filha em uma creche mais distante. Com meu filho mais velho, Emmanuel, também precisei da ajuda do CRAS”, conta. Sobre o caso, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informou que adota uma série de medidas para facilitar o acesso às vagas nas creches, como o “monitoramento territorial da demanda” e a “ampliação de unidades existentes”. “Destacamos que, nos bairros Caiçara e Carlos Prates, não há fila de espera para a faixa etária de 2 anos”, argumentou. “Reforçamos ainda que todas as crianças de 1 e 2 anos cadastradas no sistema da Prefeitura serão atendidas até o fim de 2025, conforme previsto na Portaria SMED 240/2024.”
A partir do diagnóstico do problema, o Ministério Público de Minas Gerais lançou, em março deste ano, o programa Crescer Juntos: Creches e Oportunidades. O objetivo é enfrentar a falta de acesso à creche por meio de três frentes: identificar a demanda reprimida, firmar metas com os municípios e buscar recursos para ampliar a oferta. A iniciativa também busca evitar ações judiciais, incentivar o controle social e promover soluções duradouras para garantir inclusão, equidade e proteção na primeira infância.
Mães sofrem impacto no mercado de trabalho
Em um país onde cerca de 15% dos lares são chefiados por mães solo — grupo estimado em 11,3 milhões de mulheres, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV) —, a dificuldade de acesso a creches públicas têm impacto direto na permanência delas no mercado de trabalho. Ainda de acordo com a FGV, entre as mães solo com idades entre 15 e 60 anos, 7,2% estão desempregadas. A taxa é ainda mais alta entre aquelas com filhos de até 5 anos: 10% estão fora do mercado.
A promotora Giselle de Oliveira, coordenadora do CAO-Educ, destaca que a situação dificulta a permanência de mães no mercado de trabalho. “Depois de deixar o trabalho, a reinserção é difícil. Isso compromete não só a autonomia financeira da mulher, mas também seu acesso à qualificação profissional”, afirma. Segundo ela, a ausência de vagas agrava a desigualdade de gênero e sobrecarrega as mulheres. “Essa situação pode aumentar, inclusive, a vulnerabilidade física”, acrescenta. Esse cenário se dá em um estado que registra 17 casos de violência doméstica por hora, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp).
A especialista em políticas públicas Elizabeth Fleury, pesquisadora da Fiocruz Minas, também chama atenção para o impacto no orçamento familiar causado pela falta de vagas em creches. “Mesmo em famílias sem histórico de violência, com pai e mãe trabalhando, como essas pessoas vão se organizar para lidar com essa necessidade?”, questiona.
Na visão dela, a ausência de creches representa um retrocesso, em meio aos avanços recentes na representatividade feminina no mercado de trabalho. “Muitas mulheres precisam abrir mão da carreira para ter que ficar com a criança. As que não podem deixar de trabalhar, trancam as crianças em casa, e os cuidados ficam sob responsabilidade do filho mais velho, o que causa um prejuízo coletivo, infelizmente comum em famílias de baixa renda”, diz.
O que dizem os governos sobre o problema?
Procurada, a prefeitura de Santa Rita de Ibitipoca não havia respondido até o fechamento desta edição. A Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG) informou que, conforme a Constituição Federal, a gestão da educação infantil é responsabilidade dos municípios, mas “mantém uma atuação cooperativa com as administrações municipais, incluindo repasse de recursos”. Desde 2021, segundo a pasta, R$ 1,2 bilhão foi destinado a 163 municípios para a construção de 194 escolas e creches, além da realização de reformas, compra de mobiliário e equipamentos.
Já o Ministério da Educação (MEC) informou que executa o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado à construção de creches e pré-escolas, “beneficiando cerca de 110,6 mil crianças em 1.177 municípios” em todo o país. Além disso, destacou que Minas tem 117 obras incluídas no Pacto Nacional pela Retomada de Obras da Educação Básica, iniciado em 2023, com conclusão prevista para 2025.