Quanta coisa é possível coletar em 25 quilômetros? Um caminhão de lixo, que tem capacidade para 10 toneladas, recolhe, ao longo desse percurso, cerca de oito toneladas de resíduos todos os dias. Mas a verdade é que uma equipe de garis (um na condução e outros quatro na traseira do veículo) coleta bem mais que o lixo produzido pela sociedade diariamente. O principal é o lixo, mas eles também encontram pelo caminho coisas mais desprezíveis, como a intolerância e o desrespeito humano. Nesta semana, o Brasil vivenciou um crime motivado por uma confusão no trânsito que tirou a vida do gari Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos, com um tiro no tórax.

Para entender um pouco da rotina e dos desafios dessa profissão, a equipe de O TEMPO acompanhou, nesta quinta-feira (14/8), o trabalho semelhante àquele que Laudemir desempenhou por mais de sete anos na empresa Localix Serviços Ambientais. Laudemir segurava um saco de lixo no momento em que foi acertado por um tiro; ele foi socorrido, mas morreu no hospital. O principal suspeito, Renê da Silva Nogueira Júnior, de 47 anos, foi detido nessa segunda-feira (11/8) em uma academia — cerca de oito horas após o assassinato. Na capital mineira, são 751 garis, sendo quatro mulheres e 180 motoristas (sete mulheres).

“A gente sabe que estar na rua deixa a gente sujeito a muita coisa, mas esse tipo de coisa aí (crime ocorrido com Laudemir) nunca acreditei que fosse acontecer, nunca. A gente está no meio do trânsito e fica com receio. A gente não sabe o que a pessoa está pensando, o que a pessoa tem dentro do carro, né? Às vezes, tem arma, igual no caso do rapaz lá, às vezes pode ter uma faca, a gente não sabe, é por isso que a gente é orientado a não brigar, não falar nada, para poder minimizar o risco”, relatou Matheus Felipe Seraso, de 33 anos.

Há sete anos, de segunda a sábado, ele e outros 71 garis e 32 motoristas saem da sede da prestadora de serviços da Prefeitura de Belo Horizonte, Localix Serviços Ambientais, na regional Oeste, às 8 horas da manhã. Laudemir era um desses profissionais. Por sete anos e 11 meses, ele também chegava à sede da empresa, trocava algumas palavras com os colegas de trabalho antes de seguir em um dos 32 caminhões que circulam pela regional coletando lixo. O que teria motivado o crime que tirou a vida de Laudemir faz parte da rotina dos garis. Segundo eles, não é incomum encontrar motoristas impacientes que não respeitam o fluxo de trabalho da limpeza urbana e acabam descontando sua ira nos garis.

“O motorista que está perto do caminhão não costuma achar tão ruim, mas o que está longe acha ruim demais e buzina, xinga, fala que a gente atrapalha o trânsito, que está atrasado. O meu maior medo é de atropelamento por aquele motorista que quer passar de qualquer jeito. Já quase aconteceu comigo duas vezes”, conta. Entre 2022 e julho de 2025, foram notificados pela PBH 37 acidentes de trabalho relacionados ao trânsito, incluindo casos de atropelamentos, colisões, entre outros, envolvendo garis. Os dados ainda dão conta de 203 acidentes envolvendo materiais perfurocortantes, sendo que a maioria desses casos ocorreu devido ao descarte inadequado de resíduos. Durante o trajeto desta quinta-feira, logo nos primeiros 20 minutos de percurso, um dos garis encontrou uma seringa com agulha descartada de forma irregular. “Isso é todo dia”, contou Luan Leonardo Dias, de 32 anos.

Em Belo Horizonte, segundo a PBH, os garis da Superintendência de Limpeza Urbana recolhem, por dia, cerca de 2.660 toneladas de resíduos. Desse total, 1.780 toneladas são de resíduos domiciliares (incluindo a coleta seletiva), 590 toneladas de resíduos da construção civil e volumosos (sendo 270 toneladas de deposição clandestina e 320 toneladas das Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes) e 290 toneladas de resíduos de varrição.

Os resíduos domiciliares da capital são compostos por: 49% de orgânicos, 35% de papel, metal, plástico e vidro e 16% de outros materiais, segundo levantamento publicado no Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Belo Horizonte.

Dia de trabalho

Assim como o caminhão em que Laudemir trabalhou pela última vez, na segunda-feira (11/8), o veículo que deu “carona” para a reportagem era conduzido por uma mulher. Na equipe atuam: a motorista Edna Luzia Soares, de 51 anos; os catadores Wesley Pereira Gomes e Luan Leonardo Dias, ambos com 32 anos de idade; além de Altair Jesus Meireles, de 38, e João Cláudio Gonçalves de Jesus, 41. O trajeto deles começa no bairro Estrela Dalva, mas percorre os vizinhos Buritis, Estoril, Salgado Filho, Jardim América, Prado e outros bairros da região Oeste de Belo Horizonte.

“Nosso dia a dia é pular do caminhão, pegar lixo, sair correndo, jogar na caçamba, segurar na alça e seguir. É cansativo, mas nosso maior desafio é o público. Tem muita gente sem tolerância, que não ajuda a gente, quer passar atropelando. Mas tem que ficar atento”, recomenda Wesley.

A atençã também é muito necessária dentro da cabine, afinal, além de dirigir, Edna precisa ouvir os comandos dos amigos para parar ou seguir, além de acionar o sistema que compacta o lixo para dentro do baú — processo que eles chamam de “ferrar o lixo”. Ela, que há 20 anos atua como motorista de caminhão de lixo, garante que faz sua parte para manter a fluidez no trânsito, mas enxerga a falta de empatia como principal problema da sociedade.

“O ser humano está com muita falta de paciência. Tem que ter empatia com os outros. Eles não estão tendo. Tem lugar que a própria firma pede para a gente não ficar parado para não prejudicar os outros carros, então a gente costuma parar de um jeito que dá para eles passarem, mas, quando tem carro parado torto, em local proibido, dos dois lados da rua, não tem jeito, aí atrapalha um pouco mesmo, mas é só ter paciência. Ainda bem que os coletores ajudam a gente muito na manobra”, diz.

Pode haver alívio no caminho

Se, por um lado, o ocorrido com Laudemir evidenciou o trabalho dos garis e uniu a populaçã em um sentimento de revolta, a solidariedade e a compaixão, tanto internamente quanto pela população, têm dado o tom ao labor desses profissionais. Na jornada deste dia de trabalho, a reportagem flagrou momentos de carinho com a equipe. Dos gestos simples, como acenos, cumprimentos e “buzinadas” de bom dia, aos mais concretos, como um cafezinho dado aos garis por uma cooperativa de táxi e uma gorjeta cedida por um motorista qualquer.

“A gente queria que as pessoas tivessem, pelo menos, consciência sobre as coisas, né? Que a gente está ali para exercer a função, que é a limpeza urbana, um serviço comunitário. Eles (a população) têm que entender que a gente está ali para poder ajudar, não para atrapalhar, né? Tem hora que parece que a gente está querendo atrapalhar, mas não é, tem hora que não tem jeito. A gente está aqui para exercer a função”, pediu Matheus Felipe Seraso.

Testemunhas relataram que o caminhão de coleta de lixo em que Laudemir trabalhava estava parado para recolher resíduos quando o motorista de um BYD cinza, identificado supostamente como Renê da Silva Nogueira Júnior, se irritou, alegando que o veículo atrapalhava o trânsito.

Armado, Renê teria ameaçado a condutora do caminhão, afirmando que “iria dar um tiro na cara”. Em seguida, desembarcou, recarregou a arma e efetuou um disparo que atingiu o gari.

Após o crime, o homem entrou no carro e fugiu pela avenida Tereza Cristina. A perícia recolheu no local um cartucho intacto e outro deflagrado, ambos calibre .380. Ele foi preso horas depois em uma academia de alto padrão na região Centro-Sul de BH.