Na porta do Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, um grupo de seis pessoas em situação de rua costuma se reunir no fim da tarde para passar a noite. Além deles, outros chegam por volta da meia-noite para dormir na calçada. O motivo da escolha tem relação com a segurança que eles sentem na região. “É uma área resguardada, com policiamento constante. É um lugar bom e tranquilo, diferentemente de albergues e abrigos que, infelizmente, em muitos casos, foram tomados por atividades criminosas, como o tráfico de drogas”, conta Emmanuel Coelho Souza, de 44 anos, dez deles vivendo nas ruas. Luiz Henrique Alves, de 25, está há duas semanas em situação de rua e também escolheu a portaria do maior pronto-socorro de Minas Gerais para se “abrigar” à noite. “Nunca tive problemas com ninguém, nem com meus amigos”, diz o jovem que precisou se estabelecer nas ruas após o término de um relacionamento. 

A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) confirmou que está ciente da situação e informou que uma “equipe do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS) já esteve no local e foi observada que a ocupação do espaço é dinâmica”. O Executivo municipal disse ainda que a rotatividade é um desafio para os serviços de assistência social. Em Belo Horizonte, conforme a PBH, há 5.344 pessoas vivendo pelas ruas e avenidas. Já segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (OBPopRua/POLOS-UFMG), 14.454 pessoas estavam em situação de rua em BH em março de 2025. 

Muitas dessas pessoas que vivem pelas ruas, mesmo no frio, preferem não dormir nos albergues da capital. Na última terça-feira (5/8), a reportagem esteve na porta do Hospital de Pronto-Socorro João XXIII e conversou com pessoas que não se adaptam aos abrigos da PBH. É o caso de Warlei Vínicius, de 46 anos, que vive na rua desde os 12. Ele contou que se estabeleceu em frente ao João XXIII há três meses e meio e que, amparado pela presença da população, da polícia e dos profissionais do hospital, ele e os amigos sentem maior segurança, diferentemente do que afirma encontrar nos albergues. “A segurança e os médicos do hospital nos auxiliam, assim como os comerciantes das bancas de salgados e lanches que nos apoiam”, afirma.

Questionado se já havia procurado albergues para ficar, Warlei disse que evita frequentá-los por conta do risco de doenças. “Em albergues, é comum contrair infecções de pele, como sarna e outras condições. Aqui, ao menos, é possível manter limpo o espaço onde dormimos. Aqueles que deixam lixo e bagunça, que não são fixos por aqui, dormem e partem, não se preocupam com isso. Muitos que residem aqui limpam o local onde ficam. Quando alguns chegam com problemas de pele, evitamos contato próximo”, enfatiza.

Atualmente, Vinícius recebe auxílio do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e o benefício do Bolsa Família, o que, para ele, permite ter uma alimentação digna e desfrutar de uma cerveja às vezes. “Consigo levar uma vida minimamente digna. Contudo, viver nas ruas é difícil para quem não tem recursos e para quem tem poucos. Essa vida me acompanha desde os meus 12 anos, devido à ausência de um ambiente familiar adequado. Decidi vir para a rua por causa de muitos sofrimentos e dificuldades que enfrentei”, pontua Warlei. 

União

Apesar das dificuldades, o grupo afirma que mantém a união. Roberto, de 54 anos, que preferiu não informar o sobrenome, diz que na rua não existe espaço para discriminação. Ele aponta que vive na região há três anos e meio e que o motivo de ele ter ido viver nas ruas foi a perda do emprego durante a pandemia. 

“Somos todos amigos aqui e me sinto seguro. Todos nós temos nossos defeitos e, por aqui, não há espaço para discriminação. É a necessidade que leva a pessoa a seguir nesse caminho. Não significa que essa seja a minha vida para sempre. Muitos amigos que passaram por aqui já deram a volta por cima. Creio que chegará a minha vez, preciso esperar”, salienta.

Roberto também se sensibiliza com a dor das pessoas que chegam ao João XXIII. “Algumas pessoas entram aqui e saem chorando. Conviver com a dor alheia é o pior, pois não sabemos se a pessoa que entrou ferida vai sair do hospital. Para mim, essa é a parte mais difícil da vida: conviver com a dor das pessoas”, acrescentou.

Caridade e solidariedade

Além das pessoas em situação de rua, a reportagem encontrou quem escolhe ajudar os carentes. Max Casado de Melo, de 62 anos, é advogado da União e membro da Fundação Espírita Cárita (FEC), que fica no bairro Cruzeiro, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Através do trabalho de caridade, Max e outros membros da Cárita distribuem marmitas para pessoas em situação de rua que vivem na região. Ele explicou como funciona o trabalho de preparação e distribuição realizado pela FEC.

“Contamos com uma equipe dedicada que prepara as refeições. São voluntárias que atuam na cozinha. A distribuição das marmitas ocorre às terças e quartas-feiras, portanto, duas vezes por semana. Hoje, por exemplo, estamos distribuindo 138 refeições para pessoas em situação de rua. São pessoas muito carentes, e o número de necessitados tem crescido a cada dia, acompanhando o aumento da população em situação de rua em Belo Horizonte e em outras capitais, de forma geral. São pessoas que dependem dessa assistência. Ao chegarmos, as pessoas já nos aguardam, já nos conhecem. Geralmente, duas pessoas participam da entrega das marmitas, e o fazemos com muito carinho, de forma voluntária, sem qualquer remuneração, apenas para auxiliar aqueles que sentem fome. Essa ação nos traz satisfação e bem-estar espiritual. Além do aspecto assistencial, há um lado espiritual que considero muito benéfico para quem se dedica a ajudar”, revelou.

Para o advogado, a caridade é uma das principais questões que regem os princípios do Espiritismo. “A doutrina espírita enfatiza muito a questão da caridade. Creio que, se mais pessoas se dispusessem a realizar esse trabalho, haveria menos pessoas passando fome nas ruas, nos lares, nas cidades. A caridade precisa estar sempre presente na vida do ser humano”, finalizou.

Pessoas em situação de rua destacam segurança do local. Foto: Daniel de Cerqueira/ O TEMPO

Posicionamento 

Em nota, a PBH afirma que adota várias medidas voltadas para atendimento das pessoas em situação de rua. “Nos últimos anos, a PBH reconheceu essa pauta como prioritária, ampliando e qualificando a oferta de serviços em várias áreas de atuação, como habitação, saúde, educação, trabalho e emprego”, destaca.

O Executivo municipal ainda ressalta que foi criada,  no ano passado, dentro da política de Direitos Humanos, a Diretoria de Políticas para a População de Rua, Migrantes e Refugiados, responsável por dialogar com as diversas áreas dentro do executivo municipal e com as instituições envolvidas na temática.

Veja a lista de ações adotadas pela PBH

•  Serviço Especializado de Abordagem Social:

Realiza busca ativa e abordagem social de pessoas em situação de rua. Visa atender necessidades imediatas e inserir os atendidos na rede de serviços socioassistenciais e políticas públicas, garantindo seus direitos. O Serviço foi modernizado com a aquisição de vans que, além de facilitarem o deslocamento, funcionam como pontos de apoio para os atendimentos.

* Centros de Referência para a População em Situação de Rua (Centros Pop):

Oferecem serviços e benefícios a adultos que utilizam as ruas para morar ou sobreviver. Garantem atendimento especializado, promovem desenvolvimento pessoal e social, e facilitam o acesso a outras políticas públicas. Também ajudam a fortalecer vínculos interpessoais e familiares. As unidades oferecem espaços para guarda de pertences, higiene e alimentação. Belo Horizonte possui quatro Centros Pop: três para adultos (Centro-Sul, Leste e Lagoinha) e um para crianças e adolescentes.

* Unidades de Acolhimento Institucional:

A cidade dispõe de cerca de 1.700 vagas em 20 abrigos para homens, mulheres, adolescentes e famílias em situação de rua.

Também em nota, a PBH afirmou que compreende as diferentes percepções das pessoas em situação de rua sobre os albergues e que trabalha continuamente para qualificar o acolhimento. Questionada sobre a presença de sarna e outras bactérias nos albergues, a prefeitura não respondeu. “Esses espaços seguem protocolos de segurança sanitária e contam com apoio da Guarda Municipal e das equipes de Saúde,  o que garante um acompanhamento regular. O compromisso da PBH é com a proteção, o cuidado e a dignidade de todas as pessoas em situação de rua. O executivo municipal está sempre aberto ao diálogo para aprimorar cada vez mais a rede de acolhimento”, afirma.