PRECARIEDADE

Aplicativos: inflação sufoca e entregadores trabalham até 17 horas por dia em BH

Nas ruas da capital, há até quem trocou a moto pela bicicleta para economizar nos gastos de combustível

Por Simon Nascimento
Publicado em 21 de março de 2022 | 03:00
 
 
 
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Há três anos, o sustento de V.I.M*, de 22 anos e da mãe, ambos moradores do aglomerado da Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, vem do trabalho como entregador em aplicativos de delivery. Nas ruas de Belo Horizonte, ele chega a fazer quase 30 entregas diárias em uma jornada que começa, geralmente, às 8h da manhã e só é encerrada às 2h da madrugada seguinte. “40%, 50% do que eu recebo fica na rua com os gastos de manutenção da moto e combustível. Então você tem que trabalhar muito, deixar de fazer outras coisas, para se dedicar ao trabalho”, relata o jovem.

Ele é um entre as centenas de entregadores cadastrados em plataformas como Ifood, 99food e Rappi para entregas de refeições e compras de mercado em Belo Horizonte e região metropolitana. Com o preço da gasolina nas alturas e a inflação generalizada nos alimentos, os profissionais precisaram aumentar a carga de trabalho para elevar os ganhos. Em meio a este cenário, os autônomos também viram o número de viagens reduzir e cobram, das plataformas, um reajuste nas taxas pagas para a prestação do serviço e melhores condições. 

“Você trabalha muito para ganhar pouco. Tem dia que o aplicativo ‘não toca’ e aí tem que dedicar sábado, domingo para conseguir bater a minha meta”, disse o entregador entre uma viagem e outra na rua Tomé de Souza, na Savassi. Ele garante que mantém o sonho de ter uma loja para manutenção em smartphones, profissão que aprendeu após um período matriculado em um curso na área. “Sonho é igual filho, se não alimentar, não vem”, acrescentou. 

O peso dos custos com combustível e manutenção fez com que R.E*, de 28 anos, optasse por trabalhar de bicicleta desde o início de 2021. Morador do Morro do Papagaio, aglomerado da região Oeste de BH, ele mantém a moto na garagem e pedala de 11h à meia-noite. O almoço costuma ser sentado abaixo da marquise de restaurantes da Praça da Savassi. “Eu consegui comprar a moto, mas está complicado. Porque as taxas dos aplicativos estão muito baixas. O valor que eles pagam pelas corridas não fecha a conta”, explica. 

A taxa mínima paga no Ifood aos entregadores até o final da semana passada era de R$5,31. Na sexta-feira, o aplicativo informou que o valor foi reajustado para R$6. “Faz mais de um ano que não tem reajuste. Nesse tempo a gasolina já subiu duas, três vezes. O gás de cozinha subiu, está tudo mais caro. Está fora do normal”, lamenta R.E, que mal vê o filho, de 6 anos, em função da jornada extensa.

“Eu quero ser um pai e um marido presente, é importante para construção de uma família. Mas tem as contas e em casa só eu trabalho. Preciso sacrificar o convívio com minha família para manter as coisas caminhando”, acrescentou o entregador. A preocupação com o lar também faz parte da rotina de R.M*, também de 28 anos.

Ele mora no aglomerado da Serra e se formou em um curso técnico de radiologia, mas desde que perdeu o emprego, há dois anos, ganha a vida em cima da moto comprada com ajuda dos familiares. “Eu formei em 2019, imaginei que seria melhor. Achei que teria pelo menos uma segurança de sobreviver com um valor fixo”, diz. Dos cerca de R$2 mil que ele ganha mensalmente em jornadas que chegam a 13 horas por dia, quase um quarto fica no posto de gasolina e nas oficinas. 

“É uma exploração aos motoboys. Está difícil ficar batalhando assim. Cheguei 9h da manhã e, antigamente, na hora do almoço já estava quase com R$100 e hoje (quarta-feira 16/03) estou com R$49 suados”, comentou. Na família, ele ainda tem a preocupação com a esposa, que está empregada, e com o enteado, ainda criança.

“A gente está pagando para trabalhar. Às vezes um pedido sai da Savassi para Contagem que o valor pago para entrega é insignificante”, reclama o ciclista que retirou até eletrodomésticos de casa para economizar energia. “A gente vai batalhar para sobreviver”, finalizou.

Questionadas, Ifood, 99food e Rappi disseram que respeitam os entregadores e mantêm diálogo para aprimorar condições de trabalho. No caso do Ifood, além do aumento da taxa mínima para R$6, a empresa também informou ter reajustado a taxa mínima do quilômetro rodado em 50%. O valor antigo era R$ 1,00 e passará para R$ 1,50. 

A Rappi, por sua vez, ressaltou que criou um fundo, de R$25 milhões, para garantir aumentos nos ganhos dos entregadores entre junho de 2021 e julho de 2022.   

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Especialista vê Brasil atrasado 

O Brasil conta, atualmente, com uma Lei Federal (14.297/2022) que trata da situação dos entregadores. A norma foi sancionada em janeiro deste ano e estabelece obrigatoriedade das empresas em contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador exclusivamente para acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos e serviços.

O produto deve cobrir, também, casos de invalidez permanente ou temporária e morte. Um ponto que poderia minimizar uma das reclamações frequentes dos entregadores, que queixam-se de não ter locais e ajuda para alimentação, foi vetado. Na sanção, o presidente Jair Bolsonaro não acatou o dispositivo que estabelecia que as empresas poderiam fornecer alimentação ao entregador por meio dos programas federais de alimentação do trabalhador.

Para o professor de relações do trabalho da Fundação Getúlio Vargas Paulo Renato Fernandes o país deu um pequeno passo, mas ainda está atrasado em relação aos programas para autônomos. Na avaliação do docente, as plataformas devem ser mantidas no mercado, principalmente por conseguir abarcar trabalhadores que não conseguem inserção no mercado de trabalho formal.

“Mas precisamos estar preparados, como sociedade, para interagir com essas novas tecnologias”, analisa. Para o especialista, a falta de políticas abre espaço para a precarização da atividade. “Em outros países têm legislações específicas para essas pessoas e há muitas possibilidades de se construir uma legislação neste sentido. O mundo mudou. Empregos hoje são contingente menor do que os trabalhadores autonômos”, complementa o professor. 

*Os nomes dos entregadores foram mantidos em sigilo por temor de banimento das plataformas.

 

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