A vida itinerante e sem raízes de uma comunidade cigana de Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte, está prestes a ficar para trás. O grupo da etnia Calon quer deixar a tradição nômade – pela qual são tão conhecidos – para garantir aos filhos os direitos a moradia fixa, educação e saúde. Um importante passo já foi dado: eles conquistaram o reconhecimento territorial e a doação da área de 865 m² onde vivem há mais de 11 anos e que era do município. Para ter direito ao benefício, eles enfrentaram uma longa negociação, que chegou ao fim no mês passado, com a interferência do Ministério Público Federal (MPF).

A decisão que beneficiou três famílias Calon de Nova Lima é considerada uma vitória pelos envolvidos e abre precedente para a comunidade cigana em Minas, Estado com maior número de acampamentos no país, com registro em 78 cidades, segundo levantamento do Ministério da Educação (MEC). Mas o caso é considerado uma exceção, segundo pesquisadores. Embora os ciganos sejam facilmente reconhecidos pelas roupas e pela cultura, pouco se sabe sobre essa população.

Nem mesmo quem pesquisa a fundo essas comunidades no país tem dados suficientes. Um dos documentos mais usados por estudiosos é o relatório do MEC, de 2014, que utiliza dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Juliana Campos, doutoranda em antropologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (NuQ-UFMG), fala em subnotificação. “A gente não tem boas estatísticas. Isso só contribui para que esse povo continue pouco visível para as políticas públicas no país”, afirma a pesquisadora, que estuda comunidades ciganas em cidades do Estado.

A falta de dados precisos levou o MPF a recomendar que o IBGE inclua os povos ciganos no Censo 2020 e em outras pesquisas demográficas. Em nota, o instituto informou que discute o tema.

Análise. A advogada e doutoranda em antropologia Helena Dolabela afirma que os ciganos sofrem com estereótipos e vivem sendo empurrados de um lugar para outro. “Não há compreensão em relação ao modo de vida cigana na atualidade”, afirma.

O preconceito, tanto da população que não é cigana quanto dos órgãos públicos, é um dos maiores obstáculos à garantia do direito à moradia fixa, como avalia o procurador da República do MPF em Minas, Edmundo Antônio Dias. “Há uma compreensão equivocada de que os ciganos não têm direito à moradia adequada por serem nômades. Mas essa é uma visão preconceituosa usada para negar direitos”, diz.

Cansada de percorrer longas distâncias em busca de um lugar para fixar moradia, a cigana Jandira Maria de Jesus, 77, garante que a vida nômade não é opção. “Não aguentava mais me mudar. A gente não vive em barraca porque quer, é porque não tem outro jeito”, conta.

BH. Na última semana, o quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, do bairro Santa Efigênia, na capital do Estado, foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais.

União. No bairro São Gabriel, na região Nordeste da capital, a comunidade cigana Guiemos Calon vai ter o terreno em que vive há mais de 30 anos cedido pela União por tempo indeterminado. De acordo com o Ministério do Planejamento, a regularização da ocupação está prevista em portaria publicada em junho, no “Diário Oficial da União”. Os ciganos vão ter direito a serviços como água, luz e limpeza urbana.

Prazo. No entanto, “por restrições impostas pelo período eleitoral, a assinatura do documento está prevista para 2019”, segundo o órgão.

Fé é característica marcante

Entre os dez ciganos que vivem no terreno doado pela Prefeitura de Nova Lima à comunidade Calon está Jandira Maria de Jesus, 77, que agradece a Nossa Senhora Aparecida o que mantém debaixo da barraca de lona, mesmo que os pertences sejam poucos. No centro da tenda, a imagem da santa ganha destaque.

A fé é uma característica marcante dos Calon. “Sem Deus, não somos nada”, defende Jandira, que mora sozinha e conta com doações.

Em outra barraca, vivem quatro pessoas, entre elas Adriana Soares de Nazaré, 32, que faz questão de manter o sorriso iluminado por coroas de ouro, o longo vestido vermelho, brincos e anéis. “Eu me sinto mais bonita assim”, diz.

O marido dela, João Soares do Amaral, 38, conta com a catira – negociação de animais – para levantar o dinheiro para a obra da nova casa. “O mais importante nós já conseguimos: o terreno”, diz.

Com o reconhecimento territorial, Antônio Neves do Amaral, 45, irmão de João, espera que o preconceito diminua. “Com as casas que vamos fazer, acho que vão nos ver com outros olhos. As pessoas acham que somos ladrões, mas é mentira”, afirma ele, que divide a lona com a mulher, dois filhos e uma neta de 4 meses.