Isolamento

Do parque à laje: mestre de capoeira do Parque Municipal agora treina em casa

Pandemia também causa dificuldades financeiras ao Mestre Shaolin, que há 16 anos lidera a roda de capoeira do parque

Por Flávio Tavares e Daniele Franco
Publicado em 02 de junho de 2020 | 03:00
 
 
 
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Nos 16 anos em que comanda a roda de capoeira do Parque Municipal Américo Renné Gianneti, de Belo Horizonte, Éder Marcos da Silva, 48, conhecido como Mestre Shaolin, nunca faltou um domingo. Mas mesmo com o compromisso de longa data, ele decidiu interromper uma das atividades que mais ama por um bem maior: evitar o avanço do novo coronavírus. Duas semanas antes do fechamento oficial decretado pela prefeitura, o mestre suspendeu as aulas no parque.

"Antes de começar [a pandemia] aqui em Minas eu já via pela TV e falei para alguns amigos que precisávamos nos prevenir. A capoeira tem muito contato, a roda de capoeira pode ter 50, 100 pessoas, e eu vi que a aglomeração poderia trazer problema", justifica. Desde 2006, quando a roda no parque foi iniciada, os alunos nunca ficaram sem a presença do mestre, que ajustava sua agenda pensando sempre em estar de volta a BH no domingo de manhã, já que as aulas começavam às 13h.

Os dias que antes eram repletos de contato com os colegas capoeiristas, agora são solitários, com treinos improvisados na laje de sua casa no bairro Taquaril, região Leste da capital. "Eu fiz um desenho numa cabaça, fiz um rosto e vários olhos para cada movimento, porque o capoeira tem que ser ágil, então ela tem vários olhos para me ver em qualquer lugar em que eu me movimentar", explica.

Agora, para estimular os alunos a continuarem a prática da capoeira, o mestre está promovendo um campeonato on-line. Os participantes devem enviar dois vídeos por e-mail, um tocando e cantando uma cantiga e o outro realizando algumas sequências. A técnica em ambas as apresentações será avaliada por mestres de todo o Brasil. O prêmio será um berimbau autografado por doze mestres, além de um certificado de honra.

"É para as pessoas a continuarem treinando, procurando conhecimento, a gente sabe que muitas vezes as pessoas não estão tendo espaço, tempo, mas o capoeira não pode parar. Se ele está andando, ele está gingando, se ele está almoçando, ele está gingando, dentro do ônibus balançando, ele está gingando, então, se a gente acomodar com essa epidemia, a gente vai perder tudo o que lutou a vida toda para conquistar".

Amor de longa data

A capoeira entrou na vida de Éder Marcos da Silva em 1982, na cidade de Santa Luzia, na Grande BH. "De lá para cá, nunca mais parei, sempre fazendo trabalhos com a capoeira nos parques, nas ruas e agora na laje", brinca. Desde pequeno ligado às artes marciais, Éder foi apelidado de Shaolin, e a evolução na capoeira o levou a se tornar e ser conhecido como Mestre Shaolin.

Foi em 1990, há 30 anos, que o Mestre conheceu a capoeira no Parque Municipal de Belo Horizonte. Segundo ele relata, naquela época, ainda havia muitas brigas e confusões misturadas à prática. "A roda foi proibida por cerca de oito anos e, em 2006, demos início de novo à roda para as crianças brincarem", relata. Por causa do histórico de confusões anteriores, a iniciativa começou a ser vigiada de perto pela direção do parque, que viu, após um tempo, que era uma atividade totalmente recreativa, sem confusões.

Hoje, o público que frequenta a roda aos domingos é bastante diverso. Shaolin conta que os alunos são desde crianças até senhoras de 90 anos e pessoas com deficiência. E o cuidado que começou duas semanas antes de ser obrigado a parar, o mestre também considera na hora da volta, afirmando que vai levar máscara e álcool em gel para todos. "A gente não sabe se vão voltar porque acabou ou porque querem voltar, não dá para saber, então é melhor prevenir", opina.

A dificuldade financeira também chegou junto com a pandemia. O mestre, que antes trabalhava em uma escola da prefeitura como professor de capoeira, está desempregado e tem como única fonte de renda, hoje, a venda de instrumentos que fabrica. "Antes eu me juntava com os amigos, montava cestas básicas pra doar, hoje eles é que se juntam para me ajudar", relata.

Quem quiser entrar em contato para ajudar ou se tiver interesse em um berimbau, por exemplo, pode enviar uma mensagem pelo WhatsApp para o número 31 97336-6093 e conversar com o mestre Shaolin.

Nas palavras do mestre

Como foi a paralisação por causa pandemia?
Umas três semanas antes de chegar aqui em Minas, vimos pela televisão e falei com uns amigos que não deveríamos fazer mais. Aí, duas semanas antes, decidimos comunicar para todo mundo que não teríamos mais a roda. Eu tinha até marcado um evento para o dia 29 de julho, mas começou a fechar parques e cancelamos também.

E como é sua nova rotina?
Dentro de casa eu converso com meus instrumentos, eu canto as músicas, fico inventando coisas para poder fazer e o tempo passar. Eu treino usando uma verga de berimbau, coloco uma cabaça e me movimento de frente para ela, é meu parceiro de jogo ali. Fiz um desenho nela para poder conversar com ela e sentir uma presença, uma capoeira legal ali.

Qual é o sentimento?
É uma coisa muito desesperadora pra gente (...) a gente não tem mais a liberdade de ir e vir, de trabalhar, está ficando muito doloroso não poder fazer o que você dedicou a vida toda para fazer. Quando chega domingo de manhã, aquele dia maravilhoso e você lembra que não pode sair, é a mesma coisa de estar com uma corrente amarrada e não pode sair de jeito nehum, e quando vai chegando a hora da roda, vai batendo um desespero, aí eu toco um berimbau, toco um pandeiro, um atabaque, vou treinar, mas tem sido difícil.

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