Apesar dos antiinflamatórios prescritos pelo ortopedista para tratar sua artrose, a psicóloga Vera Lúcia Santos, de 67 anos, seguia sentindo dores incapacitantes enquanto ouvia que precisaria de uma cirurgia para colocar uma prótese. "Eu sentia tanta dor, que eu deitava e não dormia, eu chorava tanto que acabava dormindo de chorar. Com isso, eu desenvolvi um quadro associado de ansiedade e depressão", lembra a mulher. Foi então que, em 2021, ela chegou até o canabidiol, ou CBD, que é uma das várias substâncias presentes na maconha e que também é usada no tratamento dessa doença, reduzindo as dores, auxiliando a pessoa a dormir e, especialmente, diminuindo o consumo de opióides e outros medicamentos comuns por estes pacientes.
A cannabis medicinal foi um importante canal que os defensores da legalização da planta passassem a ser ouvidos, tendo agregando bastante ao movimento da Marcha da Maconha, que completa 15 anos em Belo Horizonte andando de mãos dadas com os pacientes de medicamentos à base da erva.
A psicóloga conta que o tratamento fitoterápico começa aos poucos, com uma gotinha tomada pela manhã, duas a noite, até atingir a quantidade necessária para seu tratamento. "Hoje, eu não sinto dor. Ando dois quilômetros tranquilamente por dia e durmo tranquilamente, sem dor. Foi o melhor tratamento que tive até hoje. Essa coisa das pessoas terem medo de maconha é uma bobagem, o corpo da gente mesmo já tem canabinóides", completa Vera.
Diferentemente dos primeiros pacientes da cannabis medicinal, a psicóloga já não precisa mais importar o medicamento de outros países, pagando valores altíssimos para ter acesso ao extrato da planta. O óleo utilizado por ela é fornecido pela Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+Me), surgida em 2014 no Rio de Janeiro mas com sede atual no Barro Preto, na região Centro-Sul de Belo Horizonte.
Com 2 mil pacientes associados e cerca de 200 médicos prescritores cadastrados, a associação oferece óleos de CBD e THC, com dosagens variadas e preços que variam bastante, já que depende se a pessoa é ou não associada e, ainda, existem descontos para àquelas em situação de vulnerabilidade social.
Entre as doenças passíveis de tratamento com a maconha estão: epilepsia, câncer, dor neuropática, ansiedade, insônia, depressão, inflamações, doenças reumáticas, autismo, glaucoma, Alzheimer, Mal de Parkinson, esclerose múltipla e fibromialgia, entre outras.
"Lá na Ama+Me, os médicos comunicam a Anvisa que nós estamos utilizando o óleo. Então, se você quiser viajar até para o exterior, você pode levar seu óleo. Temos todo o protocolo que é exigido dentro do Brasil, cumpre todas as regras, é tudo muito bem organizado. O problema é principalmente o preconceito, a vergonha que as pessoas têm sobre o que os outros vão pensar por ela ser usuária de maconha medicinal", diz Vera.
Filme levou a "virada" para o movimento
Psicólogo e um dos conselheiros do Conselho Regional de Psicologia (CRP-MG), Anderson Matos, de 55 anos, é, também, um dos colaboradores da Ama+Me e, ainda, um dos organizadores da Marcha da Maconha da capital mineira. Ele conta que, no início, ele não participava do protesto por reproduzir o preconceito contra os maconheiros. "Eu pensava que poderia ser ruim ser visto lá, como profissional da saúde mental", lembra.
Porém, após se tornar conselheiro do CRP-MG, ele acabou conhecendo o valor terapêutico da planta e acabou se aproximando dos movimentos sociais. Para ele, a "virada de jogo" aconteceu em 2014, com o lançamento do filme "Ilegal", que contava a história de pessoas que lutavam contra o preconceito e a burocracia para conseguirem usar, legalmente, um remédio à base de maconha.
"No começo a marcha é um movimento de branco. Era a branquitude lutando pelo seu direito de poder fumar. Aí tem uma virada super importante, que foi o ano de 2014 com com o filme 'Ilegal', que abriu um outro ponto de discussão. Ela deixou de ser um movimento de maconheiro, o que não é problema algum, mas ganha uma 'cor' nova com a chegada dos pacientes, familiares, crianças, idosos e cadeirantes. Para de falar sobre direito individual e fala de princípios constitucionais, que precisam ser guardados e protegidos pela saúde pública", conta Matos.
BH deve ter outra associação em breve
Além de ser uma das organizadoras da Marcha da Maconha de BH, Ingryd Rodrigues, a Dyh, também é terapeuta cannábica na Associação Flor da Vida, fundada em Franca, em São Paulo, onde são cultivadas as plantas para produção de óleos, spray de resgate (para uma mais rápida absorsão em portadores de epilepsia) e, até mesmo, uma pomada para alívio das dores em tratamentos de doenças reumáticas.
"Atendo cerca de 50 pessoas por dia, mostrando como é o tratamento com a cannabis, como se dá o processo todo. Fazemos o acompanhamento pois não é apenas tomar o óleo, é preciso olhar de forma integral para a saúde da pessoa, para a movimentação do corpo, para o alimento, o consumo de água. Até o consumo de café tem influência no tratamento", explica Dyh.
Além do cultivo e produção dos medicamentos, a Flor da Vida também tem uma série de ações sociais, oferecendo espaço para equoterapia, vagas em uma escolinha de futebol e, ainda, a produção de 60 mil pães distribuídos mensalmente para comunidades carentes, entre outras coisas.
"Tudo isso é oferecido com o dinheiro que é arrecadado com a venda dos óleos. Agora estou fazendo esse movimento de trazer a Flor da Vida para BH, fazer uma filial na capital mineira. Já estamos procurando uma casa adequada para receber a nova sede", completou a ativista.
Brasil tem 28 produtos de cannabis autorizados
Procurada por O TEMPO, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) destacou que, desde 2019, está regulamentada a autorização de produtos à base de cannabis no Brasil. "Desta forma, as empresas interessadas podem submeter os pedidos de autorização que serão analisados a partir do requisitos atualmente vigentes na regulamentação. Atualmente existem 28 produtos autorizados para comercialização no Brasil", disse.
Após receberem essa permissão, as empresas podem colocar seus produtos de cannabis no comércio farmacêutico ou fazer a dispensação seguindo as regras específicas, por se tratar de um produto controlado. Na internet, é possível encontrar medicamentos com preços que variam de R$ 139, para 10 ml com 23,75 mg de CBD por ml, até R$ 2.300 por 30 ml com 200 mg/ml da substância.
A lista completa com todos os remédios já aprovados pela Anvisa pode ser acessada no site da agência.
"Além disso existe a possibilidade de importação excepcional para uso pessoal que desde 2015, que permite que pacientes importem o produto para uso próprio. O plantio de cannabis para produção não está regulamentado pela Anvisa. Até o momento a Anvisa autorizou somente a UFRN a realizar o plantio para fins de pesquisa", concluiu.
O Ministério da Saúde foi questionado sobre a possibilidade da cannabis medicinal integrar os quadros de medicamentos ofertados pelo SUS, porém, a pasta respondeu apenas que a Anvisa deveria ser procurada para tratar sobre o assunto. Por outro lado, a agência regulatória respondeu que o "acesso de medicamentos e terapias" pelo sistema único é coordenada pelo ministério.