Recorte por gênero

Maioria dos domicílios em déficit habitacional são chefiados por mulheres, em MG

Cenário é o mesmo a nível nacional e na região metropolitana de BH: alugueis com preços que correspondem a mais de 30% da renda da família, de até três salários mínimos, são cruzes para mulheres, pondera Frei Gilvander Moreira

Por Lara Alves
Publicado em 26 de julho de 2021 | 03:00
 
 
 
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"Está nas mãos de Deus". O pagamento do aluguel de R$ 450 por um imóvel no bairro Conjunto Taquaril, na região Leste de Belo Horizonte, converteu-se em preocupação diária para Aline*, 28, que, acumulando duas prestações atrasadas, lida com ameaças de despejo. Desempregada e mãe de duas crianças, de 3 e 5 anos, ela percebeu-se desamparada após o marido traí-la e optar por ausentar-se da residência a sete dias do prazo-limite para quitar o aluguel de fevereiro – a parcela foi paga a partir de doações feitas por moradores da região; três meses depois, ela não conseguiu pagar os valores nos meses de junho e julho.

Aline compõe um grupo de 63.451 mulheres, moradoras da região metropolitana, que são as responsáveis por lares em circunstância de deficit habitacional – pagam alugueis que correspondem a 30% de uma renda de até três salários mínimos, ou moram com parentes e conhecidos, ou residem em moradias inadequadas. A estatística integra o relatório divulgado neste ano pela Fundação João Pinheiro (FJP) que, partindo de dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) de 2019, escancara o crítico panorama da habitação no país. 

O documento jogou luz, também, para um importante recorte de gênero na discussão sobre moradia. As mulheres são as chefes de família em 60% dos lares em conjuntura deficitária no Brasil – significa que, dos 5,8 milhões de famílias sem imóvel próprio ou adequado no país, 3,5 milhões têm mulheres como a referência econômica da casa. Em Minas Gerais, elas correspondem 298,7 mil lares um universo de 496 mil em deficit habitacional. À região metropolitana de Belo Horizonte, são cerca de 63 mil os domicílios que dependem das mulheres, entre 107 mil deficitários nos 34 municípios que compõem a área. 

"Um dos aspectos que mais no chamou atenção é que uma grande parcela dessas famílias que compõem a estatística detém mulheres na posição de referência no domicílio. Há aí uma questão de gênero importante", analisa o cientista Frederico Poley, coordenador do diagnóstico feito pela Fundação João Pinheiro (FJP). Segundo ele, a impossibilidade de adquirir imóveis em condições básicas de habitação agrava a situação de fragilidade encarada por mulheres como Aline*.

Também moradora do bairro Conjunto Taquaril, Edneia Aparecida de Souza, 57, é diretora do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e reúne doações para auxílio de mulheres sem-casa. "As mulheres são maioria entre os casos de deficit habitacional. São histórias de mulheres abandonadas pelos maridos com os filhos, vítimas de violência doméstica... O sujeito não paga pensão, não ajuda com um centavo, então as mulheres desesperam mesmo, não há outra forma". Uma das primeiras moradoras da ocupação, em meados de 1980, que, hoje, é o bairro Conjunto Taquaril, ela lidera uma movimentação de apoio às mulheres que sofrem com o ônus excessivo do aluguel. "Uma de nossas estratégias é, quando sabemos sobre a ameaça de despejo e a impossibilidade de pagar o aluguel, falar com o proprietário do imóvel e tentar sensibilizá-lo para que essa mulher permaneça ali pelo maior tempo possível até que consiga se reorganizar", detalha.

"Famílias não suportam mais a pesadíssima cruz do aluguel", declara o frei Gilvander Moreira

A insegurança de encerrar o mês sem o necessário para pagamento do aluguel afeta mensalmente 3 milhões de núcleos familiares no Brasil, sendo cerca de 300 mil apenas em Minas Gerais, e 81,7 mil na região metropolitana de Belo Horizonte. Os altos preços dos alugueis são o principal componente do deficit habitacional nos três níveis – nacional, estadual e municipal. Em seguida, aparecem as habitações precárias, aquelas que não apresentam condições básicas para a sobrevivência, e a coabitação, que refere-se aos lares ocupados por mais de um núcleo familiar. Trata-se do trio de componentes que integram o cálculo do deficit habitacional. 

O ônus excessivo do aluguel liga-se às famílias que recebem até três salários mínimos, cerca de R$ 3.300, e desembolsam 30% da própria renda para pagamento das prestações – valores que oscilam entre R$ 330 e R$ 990. O cenário tende a piorar em decorrência da pandemia de coronavírus com o número recorde de desempregados no Brasil. Dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado em abril de 2021, atesta que o país atingiu uma quantidade recorde de pessoas sem trabalhar: 14,8 milhões. 

A mãe de duas crianças e moradora do bairro Taquaril, na região Leste de Belo Horizonte, é uma entre elas. "O aluguel me preocupa, está dois meses atrasado e eu não posso contar com o pai deles para nada. Ele simplesmente falou comigo para eu me virar com os meninos, ele não dá um real para os nosso filhos e estou passando muito aperto. Entreguei vários currículos, mas emprego está difícil demais. E parece que quando digo que tenho crianças pequenas, eles desistem de me contratar. Está nas mãos de Deus", narra. 

O pagamento de alugueis com preços incompatíveis com a realidade econômica de famílias de baixa renda sobrecarrega os lares em situação de deficit habitacional, como acredita o frei Gilvander Moreira, à frente da luta por moradia na Arquidiocese de Belo Horizonte. "São milhares de famílias que não suportam mais a pesadíssima cruz do aluguel. A situação é bem pior agora, percebemos um crescimento no número de famílias nas ruas. Todo despejo é uma desintegração de sonhos. Todo despejo é cruel e violento".

Vereadora em primeiro mandato por Belo Horizonte e integrante das Brigadas Populares, Bella Gonçalves (PSOL)  concorda, e sustenta também a constatação de um agravamento do cenário em função da pandemia de Covid-19. "Vemos o crescimento no número de pessoas que estão desempregadas, não têm como arcar aluguel e estão desesperadas. São pessoas que não comem para pagar o aluguel", pontua. A preocupação com o que colocar à mesa para alimentar os filhos tornou-se rotina para Aline*. "As coisas de comer eu pego em igrejas ou lugares que entregam doações. Quando tem, eu pego. Criança pede as coisas para comer, e, quando a gente não tem, né? Ou você tem que se virar, ou, como eu faço, ensinar meus meninos: 'a mamãe não tem, quando a mamãe tiver dinheiro, ela compra'", narra.

Edneia Aparecida de Souza reforça as dificuldades enfrentadas na conjuntura de desempregos, pandemia de coronavírus e alugueis caros. "Por exemplo, a mulher recebe uma cesta básica. Nós agradecemos, mas não é suficiente. De que adianta ela receber arroz e não ter gás de cozinha? O gás está aumentando toda semana, as famílias não têm empregos e o aluguel não deixa de chegar. É principalmente difícil com as crianças em casa, muitos meninos pequenos que não estavam indo para a escola... E criança pede leite, pede fruta, pede pão, né? Essa situação está adoecendo as famílias, especialmente as que têm mulheres como responsáveis", conclui.

Urbel, em BH, e Governo de Minas Gerais não respondem 

A possibilidade de extinção da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab) assombra integrantes de movimentos sociais ligados à luta por moradia. "Estamos acompanhando de perto, e soubemos que a Cohab quer privatizá-la", afirma Carlos da Silva, coordenador-geral da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa. A observação é corroborada pela vereadora Bella Gonçalves. "Atualmente, o governo Zema está priorizando a extinção da Cohab. E, além de extinguir o órgão, está colocando o patrimônio da Cohab à venda para o setor privado e usando como garantidores de créditos financeiros", cita. 

Às 21h13 de terça-feira (20), a reportagem de O TEMPO encaminhou um e-mail para a Secretaria de Governo (Segov) com cópia para as assessorias de comunicação próprias da Cohab e da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) questionando sobre o futuro da Companhia de Habitação. Respostas não foram recebidas até a noite de quinta-feira (22), o prazo-limite. 

Em relação à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), foi enviado um pedido de entrevista com o diretor-presidente da Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel), Claudius Vinícius Leite Pereira, na sexta-feira (16). Até a noite de quinta-feira (22), a reportagem não havia conseguido alinhar um horário com a assessoria de imprensa do órgão. 

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