Exemplo

Mineira enfrenta o tráfico e transforma comunidade paulista

Conheça Marlene, mineira de Jequeri que conseguiu transformar a comunidade do Morro da Macumba por meio das crianças

Por JULIANA BAETA
Publicado em 29 de março de 2017 | 17:38
 
 
 
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“É que essas crianças sou eu quando era pequena”, conta Marlene Garcia, 59, ao ser questionada sobre o motivo de dedicar a sua vida a mais de 200 crianças da comunidade do Morro da Macumba, em São Paulo. Mesmo morando na cidade desde que tinha 15 anos, Marlene não perdeu seu jeito mineiro de contar histórias. Ela lembra quando, em 2005, subiu ao galpão usado pelo tráfico na companhia da filha Vanessa e conseguiu que o chefe da facção liberasse o espaço para ela acolher as crianças da periferia. 

Nascida em Jequeri, na Zona da Mata, ela lembra o que a levou a São Paulo quando ainda tinha 15 anos. “A minha irmã casou e veio com o marido pra morar aqui na comunidade, mas aí ela foi atropelada e meu pai me mandou pra vir tomar conta dela. Eu conheci o meu marido e casei aqui, nunca mais voltei pra Minas, mas tenho saudade. É que nem tem jeito mais, né? Eu não posso largar minha ONG aqui nem minhas crianças”, conta.

Foi na sua casa em Jequeri que Marlene conheceu desde muito cedo o que era fome. “Meu pai era servente de pedreiro, ele e minha mãe tiveram 12 filhos. Imagina, filha, como é alimentar 12 crianças trabalhando de servente de pedreiro, analfabeto. Eu passei foi muita fome. A gente também pedia comida na rua. Não esqueço a vez que meu pai teve um ataque epiléptico e a gente saiu a noite para pedir osso no açougue pra fazer uma sopa pra ele”, lembra.

“Minha mãe aprendeu a ler catando papel de bala e eu também aprendi assim, porque na minha época era muito difícil ser menina mulher. Meu pai não deixava a gente aprender pra não ficar mandando carta pra namorado. O que a gente aprendeu foi escondido dele, eu pegava os papéis de bala e ia descobrindo as letras, perguntando, soletrando. Antigamente a mulher não tinha voz ativa, hoje as coisas estão melhores, graças a Deus”, explica, sem esconder o desejo de estudar. “Mas agora não dá mais, a minha preocupação é arrumar comida pras crianças”.

Evangélica e missionária, Marlene costumava levar as crianças do Morro da Macumba para a igreja, onde elas faziam teatro e balé. Mas depois da igreja, as crianças continuavam com fome e, pior, morrendo. “Eu já enterrei três meninos aqui. Eles ficavam catando latinhas e morriam atropelados na rua. Isso me deu um negócio, menina. Como eu trabalhava em padaria, na época, eu trazia pão pra eles e você precisava ver, formava fila na porta do meu barraco. Aí comecei a fazer comida na garagem dos outros, ia me virando, o que eu não podia é deixar esses meninos com fome”.

Tráfico dá lugar a ONG

Ajudando as crianças da comunidade como podia, Marlene sentiu a necessidade de um espaço para elas. “Fui obrigada a abrir uma casa, falei com Deus se eu tivesse uma casa as crianças poderiam ficar lá e eu ia arrumar comida. Aí em 2005 mais ou menos, eu e minha filha Vanessa fomos lá no galpão com um projeto pra entregar pro chefe do tráfico que tinha apossado de lá. Era um galpão abandonado, cheio de entulho. Era perigoso sim, mas o que eu podia fazer, minha filha? Quando você tá com um objetivo você vai lá e faz, o que mais você pode fazer?”, questiona.

Após conversar com o chefe do tráfico e explicar a situação das crianças da comunidade, muitas vezes, usadas até como escudo durante conflitos com a polícia, ele deixou o lugar. Nascia ali a ONG  Reviver Integração da Criança e do Adolescente (Recicla), que hoje atende 230 crianças da comunidade entre 4 a 15 anos, disponibiliza alfabetização para os pequenos, aulas de inglês e de francês, capoeira, reforço e acompanhamento escolar. E claro, a comida de Marlene.

“Eu sou a cozinheira, a faxineira e a presidente da minha ONG”, brinca. Os professores são voluntários, inclusive, os filhos de Marlene. “A minha filha Vanessa está formando em psicologia, e os outros dois em pedagogia. Tudo por causa das crianças. Quando vem os meninos do último período da pedagogia aqui sou eu que assino o estágio deles, acredita?”, conta, orgulhosa.

FOTO: Reprodução/ Facebook
Marlene
A comida de Marlene que alimenta mais de 200 crianças no Morro da Macumba

As contas e despesas da ONG são pagas por doadores também e a comida é doada pela Pastoral da Igreja Católica. “As crianças adoram minha comida, e me tratam como mãe. Eu arrumo emprego pros adolescentes, todo mundo que vem aqui ajudar eu peço um emprego pra um menino. Dou bronca também, claro, porque é minha família, né?”, esclarece.

Transformação

O maior orgulho de Marlene é perceber que ao longo dos últimos anos a qualidade de vida na comunidade, que tem cerca de 10 mil pessoas,  melhorou consideravelmente. “Agora acabou esse negócio de criminalidade usar criança, não tem mais isso na nossa comunidade, as crianças estão tudo comigo. Todo mundo me respeita, eu sempre recebo flores aqui. As crianças vêm sozinhas pra cá”, relata.

“Se a gente não fizer nada quem é que vai fazer, político? Se a comunidade não olhar pras crianças, ninguém vai olhar. Os políticos vem aqui só pra pedir nosso voto, mas olha só, na comunidade não tem uma quadra de esporte, não tem uma área de lazer, não tem nada pra melhorar a vida. Antes da minha ONG, as minhas crianças pediam comida no Carrefour, faziam pequenos furtos, roubavam bolachas, danones, comiam do lixo, faziam malabares pra ganhar pão. Isso não acontece mais porque elas não precisam, eu dou comida pra elas. Elas não vão mais pra rua, elas vem pra cá”, diz.

Segundo Marlene, muitos pais dessas crianças são catadores de papelão, de latinhas, presidiários, ou simplesmente não existem. “Mas a criança não tem culpa ué, criança é criança, pronto e acabou. Se for jogar a culpa dos pais nas crianças é porque é louco. Eu acho que quem culpa esses meninos é que não tem Deus no coração. Muitas crianças caem no crime é por falta de uma alimentação, de uma ajuda, de uma orientação. Você não sabe o que é passar fome, minha filha, você não sabe o que a gente faz por falta de comida. E eu percebi que tudo isso começa por causa de comida, ninguém aguenta a fome. Por isso que quando os meninos vêm me contar as histórias deles eu choro. Porque eu pequena era eles também”, finaliza.

 

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