Garimpo ilegal

No Jequitinhonha, garimpo é tradição e minerais são ‘presente de Deus’

Segundo historiador da região, a operação contra garimpo em Senador Mourão é só mais um episódio de uma disputa que existe desde o período colonial

Por José Vítor Camilo
Publicado em 18 de dezembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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"Deus criou a natureza para todos, para a gente sobreviver. É mineração de subsistência, e eu fui criada assim. Na época da chuva meu pai plantava e, na seca, era o garimpo que salvava. Não tinha emprego, não tinha ajuda de governo, não tinha nada". A fala é de uma mulher de 63 anos, moradora de Senador Mourão, distrito de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, após ser questionada sobre a operação policial que prendeu 31 pessoas no início do mês em um garimpo ilegal que se instalou na zona rural da comunidade e mudou a rotina pacata do local.

Ela se disse assustada com a proporção da ação, realizada de forma conjunta pelas polícias Militar de Meio Ambiente e Federal e coordenada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), levando dezenas de viaturas e até um helicóptero à pequena comunidade no último dia 7 de dezembro.

"Estou assustada com isso de a polícia vir e tirar as pessoas de lá, prender gente trabalhadora. A gente vê as grandes mineradoras extraindo, fazendo barragens, matando gente e destruindo a natureza. Está tudo errado", reclama. Na casa da moradora, ao lado da televisão e abaixo das fotos de familiares, estão dezenas de cristais encontrados por ela e por outras pessoas da família ao longo dos anos, enfeites comuns nas casas locais.

Cristais e outras pedras preciosas

Segundo Marcos Lobato Martins, historiador e professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), no campus de Diamantina, faz parte da cultura garimpeira da região considerar que o ouro e o diamante são "dádivas divinas", disponíveis apenas para os "garimpeiros sabidos" e dotados de iniciativa e capacidade de trabalho.

"Para eles, a legislação minerária – com todos os seus fastidiosos e numerosos trâmites burocráticos – representa inaceitável empecilho à sua sobrevivência. Garimpeiros na região de Diamantina são avessos a licenças, normas e restrições operacionais, à interferência estatal. Eles se perguntam: 'Se foi Deus quem colocou debaixo da terra, por que o Estado tem que interferir na mineração?'", garante o estudioso do tema.

População local defende regulação

Ainda segundo a mulher de 63 anos, os moradores de Senador Mourão consideram todos uma grande família, até mesmo por todos se conhecerem e membros das famílias se casarem.

"Ver eles sendo presos como bandidos é muito triste. A gente tem a obrigação de lutar por uma regulação, para termos uma sociedade mais justa e solidária. Estamos passando por uma crise, e o encontro desse lugar de onde as pessoas podem tirar um dinheiro rápido gira a economia e beneficia toda a sociedade. Por que proibir?", indaga a mulher.

No distrito, a reportagem de O TEMPO encontrou um senhor de 66 anos que conversava com os policiais militares do destacamento local na praça da igreja. Ele contou ter trabalhado durante toda a vida em grandes empresas de mineração que atuaram na região e, sem qualquer medo das autoridades presentes, defendeu que esse tipo de garimpo precisa ser legalizado.

"Não vou falar que não existe impacto na natureza, pois existe uma destruição do subsolo, para abrir as catas. Mas, se quiser voltar com a terra toda para dentro, eles fazem. O ideal era ter fiscalização e um trabalho educativo, para taparem tudo e plantarem algo, ao invés de deixar tudo feio lá", defendeu.

A ideia também é apoiada por Tarcísio de Oliveira, de 78 anos. Vivendo ao lado da sede da PM do distrito, ele conta que, na década de 1960, trabalhou em algumas dragas no rio Jequitinhonha, mas, segundo ele mesmo, esta, sim, era uma atividade que prejudicava o meio ambiente.

"Teria que ser regulado, porque isso aí (operação) está tirando o pão de cada dia de muita gente, pai de família que não tem um emprego. Aqui, na região, só tem essas firmas de eucalipto, que empregam pouca gente. Tinha que chegar a uma solução que a gente não fica sem o garimpinho nem a natureza fica degradada", pediu o idoso.

Embate de garimpeiros e autoridades tem mais de 300 anos

Apesar de esse ponto de garimpo ilegal ser relativamente novo, esta não é a primeira vez que esses trabalhadores informais e autoridades travam batalhas. Em 2019, foi fechado pela PF um garimpo ilegal no local conhecido como "Areinha", que existia desde 2007 em pleno rio Jequitinhonha, em antigo garimpo da Andrade Gutierrez que acabou encerrado no local, próximo de Senador Mourão.

Segundo o historiador Marcos Lobato Martins, a recente operação policial é apenas mais um episódio do que ele chamou de "dramática história" da região. "Estamos diante da continuidade da mineração ilegal, que ainda ocupa muitas pessoas no entorno de Diamantina, que passam os dias a revolver cascalhos em busca da riqueza mineral, empregando instrumentos simples, técnicas tradicionais e desgastante trabalho manual. Eles (garimpeiros) são ágeis, nômades e exploram áreas anteriormente mineradas legalmente, sejam as dirigidas pela Real Extração (no século XVIII) ou pelas companhias nacionais e estrangeiras que se instalaram no Alto Jequitinhonha durante o século XX", detalha o historiador.

Apesar de a constante batalha desses garimpeiros, que também são chamados de "faiscadores", existir desde a época da Coroa Portuguesa, foi a partir do final da década de 1980 que esses pequenos mineradores passaram a ser alvo das políticas de preservação ambiental, que, para eles, privilegia a natureza e os transforma em "vilões".

"Eles pensam que o garimpo artesanal ou semimecanizado é infinitamente menos destrutivo do que a grande mineração e que esta, sim, deveria ocupar as preocupações das autoridades ambientais. Eles (moradores da região) desconhecem os efeitos agregados das atividades de milhares de garimpeiros e faiscadores por mais de três séculos. E, por isso, desde os anos 1990, defendem seus interesses, por meio da Cooperativa Garimpeira Regional de Diamantina (Coopergardi)", lembra. 

A entidade, ainda conforme o estudioso, cobra um tratamento especial na legislação minerária e ambiental, com licenciamentos simplificados, além da criação de reservas extrativistas garimpeiras, apoio técnico e creditício e facilidades na comercialização do produto das lavras. O TEMPO tentou contato a cooperativa, mas o telefone encontrado não existia.

O garimpo é tão presente na população local que chega a ser tema de atrações turísticas na cidade, como o Museu do Garimpo, localizado no centro histórico, e,até mesmo um restaurante e pousada com um garimpo artesanal que pode ser acompanhado de perto pelos clientes.

Proprietária da pousada Relíquias do Tempo, instalada em um enorme casarão colonial, Cármen Couto Nascimento, de 71 anos, mantém no local um pequeno museu dedicato à extração de ouro e diamantes. Por lá, o garimpo é agraciado com peças históricas, tendo sua importância colocada no mesmo patamar do presidente Juscelino Kubitschek, de Chica da Silva e do fotógrafo Chichico Alkmim, "celebridades" locais que também são destaques no estabelecimento.

Em pequeno museu dedicado ao garimpo, maquete ensina aos turistas como funciona o processo de extração de ouro e diamante

"Aqui a gente traz ferramentas e equipamentos de toda a cadeia, desde o garimpo até os diamantários, lapidários e ourives. Essas profissões eram ensinadas de geração em geração. Aqui, nesta foto, por exemplo, estão pai e filho", explica, sem esconder o orgulho da história de Diamantina, a dona da pousada.

Existe garimpo legal?

Responsável pelo licenciamento ambiental de qualquer empreendimento em Minas Gerais, a Semad explicou que as atividades que aconteciam em Senador Mourão, que têm o nome técnico de lavra subterrânea ou lavra a céu aberto, são passíveis de licenciamento ambiental, mas que elas estavam sendo realizadas sem a devida autorização.

A extração mineral, entre elas o garimpo, são citados na Constituição Federal em pelo menos quatro artigos, sendo previsto antes de mais nada que qualquer recurso mineral, inclusive em subsolo, pertence à União. Porém, no artigo seguinte, é determinado que o Estado pode "estabelecer áreas para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa".

"O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros", completa a Constituição no seu artigo 174.

Conforme a Agência Nacional de Mineração (ANM), a lavra garimpeira pode ser permitida para extração de minerais que, por sua natureza, pequeno volume e distribuição irregular no solo, muitas vezes não justificam o investimento em pesquisas, que são muito altos.

Ouro e diamante estão entre os minerais considerados garimpáveis pelo órgão que fiscaliza a atividade no Brasil. "A ANM estabelece, mediante portaria, as áreas de garimpagem, levando em consideração a ocorrência do bem mineral garimpável, o interesse do setor mineral e as razões de ordem social e ambiental. A criação ou ampliação de áreas de garimpagem fica condicionada à prévia licença do órgão ambiental competente, e não poderá abranger terras indígenas", completou o órgão.

A ANM estipula ainda que, nas áreas de garimpagem, os trabalhos devem ser feitos, preferencialmente, de forma associativa, com prioridade para cooperativas de garimpeiros. A lavra pode ser concedida por até 5 anos e a área não pode ultrapassar 50 hectares.

Impactos ambientais

Segundo ambientalistas, quando o garimpo ilegal acontece em rios, como a exploração de "Areinha" ocorrida por mais de 10 anos no rio Jequitinhonha, o uso de dragas e outras máquinas pesadas podem causar o assoreamento dos rios, além do desmatamento e rosão do solo no entorno da área. Com isso, animais acabam mortos e rios sofrem danos irreversíveis.

Além disso, muitas vezes no garimpo ilegal há a utilização do mercúrio, metal pesado que costuma ser despejado na água, contaminando animais e pessoas que dependem destes rios.

Já no caso do garimpo manual, com as chamadas "catas", como o visitado pela reportagem de O TEMPO em Senador Mourão, os principais impactos são o desmatamento de grandes áreas de mata, como registrado na área de Cerrado em Diamantina.

Conforme a Semad, as cavas efetuadas no terreno poderiam evoluir para processos erosivos, o que causa grande degradação ambiental. "Além da supressão de vegetação, foi constatada grande movimentação de terra pelo processo de lavra a céu aberto ou pela lavra subterrânea, pois já existiam alguns túneis escavados no solo. Essa terra pode vir a ser carreada para as seções naturais do terreno, em decorrência de eventos de chuva e, ainda que não esteja em área de preservação permanente, vir a atingir cursos de água da bacia hidrográfica", detalhou a pasta.

A secretaria alertou ainda sobre a grande quantidade de resíduos sólidos encontrados no local durante a operação, como sacolas, plásticos, papéis, garrafas pets, restos de alimentos e, até mesmo, dejetos, o que é resultado da aglomeração de pessoas no local, inclusive, com fixação de acampamentos.

Garimpeiros tradicionais buscam indenização da Vale

A mais de 400 km de Diamantina, em um distrito de Ouro Preto - outra cidade cuja história se mistura com a da mineração -, um grupo organizado de garimpeiros busca o reconhecimento como um grupo tradicional. Eles querem ser indenizados pela mineradora Vale, uma vez que, atualmente, estão proibidos de garimpar nos rios que cortam a localidade.

A batalha de "Davi e Golias" acontece em Antônio Pereira, distrito localizado logo abaixo da barragem Doutor, em nível 1 de emergência e que levou à evacuação de 180 famílias do local em 2019. A estrutura passa por obras de descaracterização e, desde então, a empresa estaria impedindo esse grupo de realizar suas atividades, alegando se tratar de um local de risco em caso de rompimento.

Camila Bento, coordenadora de direitos e participação social do Instituto Guaicuy, que presta assessoria técnica aos atingidos da comunidade, destaca que esse grupo de garimpeiros tradicionais "tem um modo de vida muito específico e tradicional".

"São grupos que se originam no período colonial, mas é uma atividade que se diferencia muito da extração feita com grandes técnicas. É uma extração manual, artesanal e coletiva. Eles contam com um modo de vida e até o conjunto de saberes que remontam ao período colonial", detalha.

Wilson Nunes, de 67 anos, é presidente da Associação dos Garimpeiros Tradicionais de Antônio Pereira. Nascido e criado na comunidade, ele conta que o lugar só existe por causa do garimpo tradicional. "Minha mãe era garimpeira, o meu pai também. Depois do rompimento da barragem de Fundão, o distrito foi esvaziado após as empresas dispensarem todo mundo daqui que trabalhava para ela. Foi o garimpo tradicional que manteve a comunidade funcionando. Se não fosse isso, todo mundo tinha passado fome aqui", defende.

Foto mostra Wilson, garimpeiro tradicional de Antônio Pereira, perto do rio onde ele é impedido pela Vale de garimpar

Ivone Pereira Zacarias, de 54 anos, também faz parte da associação e conta que, em 2022, ela e outras pessoas foram presas pela Polícia Federal. Ela detalha que, na ocasião, teve apreendida uma bateia (ferramenta artesanal usada para separar o ouro do cascalho) que era do seu pai.

"Era minha herança, não é? Só conseguimos recuperar nossos equipamentos depois de um ano e meio. A gente usa picareta, pá, marreta, enxada, carpete e a bateia. A Vale destrói com maquinário, e nós, não, trabalhamos manual, não usamos mercúrio, que acaba com a natureza e com a nossa saúde, mas sim com um ímã. Já tem três anos que não podemos garimpar em paz mais", reclama a moradora.

Procurada pela reportagem de O TEMPO, a Vale ainda não se posicionou sobre as reivindicações dos garimpeiros tradicionais.

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