Moradoras de BH no Rio

Polícia vai investigar denúncia de internação por suposta transfobia

A vítima é uma mulher trans que morava em Belo Horizonte junto com a namorada, também transexual, há um ano e meio, e foram para o Rio no mês de maio a pedido da mãe de uma delas, que acabou internando a filha involuntariamente

Por Natália Oliveira
Publicado em 19 de maio de 2017 | 14:39
 
 
 
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A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro vão investigar uma denúncia de internação forçada de uma transexual, moradora de Belo Horizonte, em clínica psiquiátrica pela própria mãe. O motivo para a internação, supostamente, seria transfobia - atitudes ou sentimentos negativos a pessoas transexuais, travestis ou transgêneros. O caso ocorreu no último dia 11 de maio, em São Gonçalo, no interior do Estado carioca. Na última quarta-feira (17) a namorada da trans internada denunciou o caso à Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Niterói, também no interior do Rio.

Bianca da Cunha Moura, 22, que também é transexual, contou que ela e a namorada Bruna Andrade de César, 23, estavam no interior do Rio visitando a família de Bruna. Segundo ela, desde quando chegaram à casa dos familiares da namorada, elas foram recebidas com xingamentos pela sogra. “No dia que íamos embora, eu ouvi gritos da Bruna e quando fui ver, havia uma ambulância e enfermeiros levando ela”, conta Bianca.

Ainda de acordo com Bianca, a mãe de Bruna acompanhou todo o processo e disse que ia curar a filha. “No momento que os enfermeiros chegaram para pegá-la, a mãe disse que ia raspar a cabeça dela e eles trocaram a roupa dela na rua e a vestiram com roupas masculinas. Isso foi um constrangimento muito grande para ela, porque eles a trocaram no meio da rua”, destacou.

A mãe não quis informar para Bianca para onde Bruna seria levada e a namorada não conseguiu descobrir em qual clínica ela está. “Eu tento falar com a mãe dela, eu procuro por notícias, eu quero ver a Bruna. Estou muito desesperada, sem saber de nada. Isso que aconteceu foi sequestro porque simplesmente não sabemos de nada”. Nesta sexta-feira (19), o perfil do Facebook de Bruna foi retirado do ar e Bianca ainda não sabe por quem.

Desde que ficou sem notícias da namorada, Bianca começou o processo para denunciar o caso e foi até o Ministério Público do Rio de Janeiro. “Bianca da Cunha Moura foi recebida, no dia 15 de maio, pela Assessoria de Direitos Humanos e Minorias do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). O fato narrado por ela foi encaminhado para a 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal, que já se manifestou pela imediata instauração de inquérito policial na 74ª DP (Alcântara), para que o caso seja registrado e apurado”, informou o Ministério Público da cidade por meio de nota.

Bianca também procurou a Polícia Civil e foi ouvida na última quarta-feira (17) na Deam de Niterói. Nesta quinta-feira (18), ela também passou por exame de corpo de delito no Instituto Médico-Legal (IML) da cidade. De acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Civil, o caso foi encaminhado para a Delegacia de Polícia Civil de São Gonçalo, que foi onde ocorreu o fato nesta sexta-feira (19), e que um inquérito será aberto para apurar o ocorrido.

O casal se conheceu em São Gonçalo, em 2014 e, há cerca de um ano e meio, elas decidiram se mudar para Belo Horizonte, justamente pelo fato da família de Bruna não aceitar ela ser transsexual. “Ela queria muito fazer a transição, mas tinha medo da família não aceitar, ai resolvemos nos mudar”, conclui Bianca.

Na capital mineira, as duas foram acolhidas pela Casa de Referência a Mulher Tina Martins, localizada no bairro Funcionários, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Pelas redes sociais, integrantes da casa também manifestam apoio no sentido de encontrar Bruna.

O casal havia voltado para o Rio para morar em uma casa oferecida pela mãe de Bruna, que pediu que as duas voltassem. Mas com as discussões constantes e o preconceito que sofriam nas ruas de São Gonçalo, elas resolveram voltar para Belo Horizonte.

A notícia de que voltariam a capital mineira foi dada à sogra no dia 10 de maio e no dia seguinte ela internou Bruna. De acordo com a Lei 10.216 que regulamenta as internações psiquiátricas, no caso de internações involuntárias, como foi a de Bruna, é preciso avisar o Ministério Público em até 72 horas. O órgão não conseguiu informar à reportagem se o aviso foi feito.

Bianca foi para a Delegacia de São Gonçalo para conversar com a Polícia Civil na tarde desta sexta-feira (19).  A mãe de Bruna também foi até a delegacia para prestar informações.  A polícia não informou o conteúdo dos depoimentos. 

FOTO: Arquivo Pessoal
Bruna sofria preconceito em São Gonçalo
Bruna sofria preconceito em São Gonçalo


Mãe nega

Ao jornal carioca “O Dia”, a mãe de Bruna negou que tenha internado  a jovem por transfobia. Ela diz que o filho - já que chama Bruna no masculino - foi internado por problemas psiquiátricos. Bianca nega que Bruna passe por qualquer problema deste tipo.

A reportagem de O TEMPO tentou contato com a mãe de Bruna pelo telefone por três dias, porém ela não atendeu aos telefonemas. A reportagem também tentou contato pelo Whatsapp, no entanto, a mulher visualizou as mensagens, mas não deu nenhum resposta. Bianca negou que a namorada tenha problemas psiquiátricos.

FOTO: Reprodução Facebook
Segundo namorada Bruna não tinha problemas psiquiátricos ou dependência química
Segundo namorada Bruna não tinha problemas psiquiátricos ou dependência química

Empresa confirma remoção

A reportagem de O TEMPO conseguiu falar com a empresa responsável pela ambulância que fez a remoção da jovem. Um funcionário da empresa confirmou que a menina foi levada para uma clínica a pedido da família no último dia 11 de maio. O funcionário disse que que não poderia informar para onde ela foi levada. Por sua página no Facebook, a empresa também publicou no dia 11 de maio a remoção de Bruna e disse que ela foi acompanhada por um familiar. A empresa nega que tenha agredido Bruna e sua namorada.

Existe a suspeita de que Bruna esteja internada em uma clínica no interior de São Paulo. A reportagem entrou em contato com a clínica, mas funcionários informaram que não podem dar informações sobre pacientes internados.

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) informou que a empresa não está cadastrada no órgão para fazer as remoções.

FOTO: Reprodução Facebook
A empresa da ambulância que fez a remoção postou na data
A empresa da ambulância que fez a remoção de Bruna postou na data o trabalho

Namorada recebe auxílio

No Rio de Janeiro, Bianca está recebendo apoio do Conselho Municipal pelos Direitos da População LGBT em Niterói, interior do Rio. A presidente do conselho, Bruna Benevides, explicou que foi disponibilizado um advogado para ajudá-la no caso. Bruna acompanhou Bianca na delegacia e contou que será oferecido um apoio psicológico para ela.

“Nossa ideia é oferecer suporte para que essa situação seja menos dolorosa e também queremos a apuração do caso. É provável que a gente esteja diante de mais um caso grave de transfobia e estamos lutando para que as circunstâncias do que aconteceu com Bruna sejam esclarecidas”, ressalta a presidente do Conselho.

FOTO: Reprodução facebook
Bruna e Bianca estão juntas desde 2014
Bruna e Bianca estão juntas desde 2014

Conselho de Psicologia repudia internações por transfobia

Minientrevista

Dalcira Ferrão, psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia MG

 

O TEMPO -  Pela lei, como funcionam essas internações? O que o conselho orienta nos casos dessas internações? Aliás, vocês concordam com internação em clínicas ou orientam outros tipos de tratamento?

Dalcira - Atualmente e desde 2001, a lei que regula as internações no Brasil é a Lei 10.216. Esta lei diz que existem três tipos de internação: voluntária (quando a pessoa quer e deseja), involuntária (quando os serviços de saúde entendem que é importante para proteger aquela pessoa) e compulsória (quando a justiça decide). Nos últimos casos, temos visto vários insucessos e retrocessos. Quando não vemos adesão do sujeito e sem desejo de se tratar, ninguém muda de posição, por isso, essas internações, que me parece foi o que aconteceu, dizem muito de quem internou forçadamente e pouco do sujeito que está sem sua liberdade dentro de uma instituição. Nesse sentido, embora amparada pela Lei 10.216, esta mãe precisa informar ao Ministério Público, em até 72h, que fez esta internação involuntária. O que imagino que não tenha ocorrido.

O TEMPO - Pelo que contou a namorada a internação parece um caso de transfobia, o que o conselho pode dizer sobre isso?

Dalcira- Segundo o relato da companheira de Bruna, Bia Zazu (Bianca), o ato ocorrido mostra-se motivado por lesbofobia e transfobia, já que foi cometido pelo fato de Bruna ser mulher transexual e se relacionar com outra mulher transexual. A travestilidade e a transexualidade por si só não são motivos para que haja uma internação compulsória, com a justificativa de uma possível "cura" ou "reversão", já que não há o que ser curado em questão. Caso este ato tenha ocorrido da maneira que foi relatada, percebemos uma arbitrariedade e desproporcionalidade diante da realidade.

O TEMPO - O que o conselho pode orientar no caso de pais que têm filhos ou filhas trans?

Dalcira - Ao perceber que a(o) filha(o) reconhece-se enquanto travesti, mulher transexual ou homem trans, a partir de sua autodenominação, os pais podem procurar suporte, um acompanhamento profissional para melhor entender tais questões e facilitar de alguma forma a proximidade com tal realidade.

O TEMPO - Como você está vendo esse caso da Bruna?

Dalcira- Ainda que esperamos ter mais informações sobre o caso, de acordo com o relato da companheira de Bruna, Bia Zazu, a suposta atitude da mãe de Bruna mostra como o não-entendimento das questões relacionadas às travestilidades, transexualidades e lesbianidades ainda podem causar violências e conflitos familiares.

O TEMPO - Tratar pessoas trans como patologia é um hábito que os pais praticam muito? Qual a orientação para que isso não seja feito.

Dalcira - A lógica da patologização das identidades travestis e trans ainda tem imperado de modo geral em nossa sociedade, que ainda é marcada pelo saber médico, biologicista, binário e muitas vezes higienista. Na ausência da compreensão das novas possibilidades identitárias muitos pais acabam por reforçar tais lógicas, buscando explicações para aquilo que ainda não compreendem. Tais atitudes acabam por gerar sofrimento nas(os) filhas(os) que muitas vezes não conseguirão corresponder a tais expectativas. Nesses casos, o acompanhamento psicoterápico torna-se uma ferramenta importante na desconstrução de estereótipos de gênero e no auxílio da família encontrar estratégias para lidar melhor com estas questões. Ressalto ainda que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, expressa nitidamente seu posicionamento favorável em relação à despatologização das identidades travestis e transexuais, não compreendendo tais identidades enquanto transtornos passíveis de cura, mas sim como possibilidades de construções identitárias como tantas outras.

FOTO: Arquivo Pessoal
Quem tiver informações sobre Bruna deve avisar a Polícia Civil do Rio de Janeiro
Quem tiver informações sobre Bruna deve avisar a Polícia Civil do Rio de Janeiro

 

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